A ROTA DA COMPANHIA AÉREA NACIONAL
Transportadora mantém-se no ar há 75 anos, mas não há fórmula de gestão que aguente. Já foi ensaiado o modelo empresarial público e a nacionalização com gestão direta do Estado. A pandemia veio fragilizar ainda mais a companhia
Podemos usar como metáfora da companhia
aérea portuguesa o sequestro de 1980 de um avião que ia para Faro. Um jovem de 17 anos, com uma pistola, desviou da rota a aeronave para Madrid, exigindo 20 milhões de dólares e um salvo-conduto para a Suíça. A bordo iam 80 passageiros e, entre a tripulação, José Guedes, que recordou a história à jornalista Manuela Guerreiro. Numa época em que a Europa
tremia com a ameaça terrorista dentro das suas próprias fronteiras, o então
copiloto convenceu o sequestrador a deixar sair os passageiros em Espanha,
prometendo-lhe que intercederia por ele junto do próprio pai, juiz conselheiro. A pandemia apenas pôs a nu a crónica situação deficitária da companhia, que nenhuma panaceia ou promessa fantasiosa logrou conter ao longo dos anos. Não há
milhões que cheguem
Nasceu como Transportes Aéreos Portugueses (TAP), a 14 de março de 1945, para desempenhar o serviço aéreo estatal. Foi fundada por Humberto Delgado, então diretor do Secretariado da Aeronáutica Civil, no ano da rendição da Alemanha nazi. Estava Salazar na cadeira do poder e Franco reprimia na vizinha Espanha. Mussolini era executado em Itália e Harry Truman substituía Roosevelt nos Estados Unidos. Mao Tsé Tung liderava o Partido Comunista chinês e Pio XII era o Papa de Roma. Hiroxima e Nagasáqui desapareciam sob a bomba atómica. Na telefonia ouvia-se Glenn Miller. Não havia internet nem telemóveis e os portugueses nem sonhavam que um dia iriam pagar por sucessivos desaires na gestão de bancos ou de companhias aéreas.
Esta é a história de um projeto que nasceu num tempo de esperança, mas que foi uma criança mimada e um adolescente muito ambicioso. Na passagem para adulto, viveu fases depressivas e tornou-se dependente. Mas resistiu sempre. Agora, aos 75, tem uma velhice exigente e gasta sem pudor.
Ao longo dos anos a TAP tem-se mantido no ar à custa de oscilações financeiras e elevados prejuízos, demasiados prejuízos, por culpa das experiências de gestão, ora privatizada, ora nacionalizada, ora um pouco das duas. E chega ao ano da pandemia de Covid-19 vacilante, tal como todas as outras companhias aéreas do Mundo: nos primeiros três meses de 2020, o prejuízo da TAP foi de 385 milhões de euros. São mais de 9 mil trabalhadores e os gastos em salários superam os 53,5 milhões de euros por mês. Uma ferida demasiado grande, que o empréstimo do Estado - 1200 milhões de euros - não vai conseguir sarar. A aviação civil internacional prevê perdas globais de 233 mil milhões de euros.
A 19 de setembro de 1946, um avião bimotor da II Guerra Mundial adaptado à aviação civil, um DC3 - Dakota, com 11 passageiros a bordo, reali
zou o primeiro voo comercial da TAP. Partiu de Lisboa às 13h10 e aterrou em Madrid às 15h06. A TAP estava no ar. Nunca teve asas para voar sozinha, mas estava no ar.
A primeira ligação doméstica surge em 1947, Lisboa-Porto. O primeiro processo de ‘privatização’ ocorre em 1953, quando a companhia aérea passa de serviço público a Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada (SARL). Em 1955 chega o quadrimotor de longo curso Lockheed Super Constellation. A década de 1950 fecha em alta: foram transportados 64 mil passageiros e realizadas 10 mil horas de voo.
Chegam os anos 60. Em 1961, a TAP ruma ao Oriente, aterrando em Goa, num voo de 19 horas, com cinco escalas intermédias. Em julho de 1962, entra ao serviço o primeiro avião a jato, um Caravelle. Em 1964 atinge o primeiro milhão de passageiros transportados. E chega também o primeiro Boeing: o B 707.
Em 1971, a TAP instala-se no Aeroporto de Lisboa e em 1972 põe no ar o mítico Jumbo (Boeing 747-200). Dois anos depois é ano de revolução em Portugal. Ocorre uma onda de nacionalizações que volta a transformar a TAP em empresa pública.
O ano 1977 é trágico. A 19 de novembro, um avião da TAP proveniente de Bruxelas com destino ao Funchal não consegue travar numa pista que, na altura, era demasiado pequena e despenha-se no Atlântico. Morrem 131 pessoas. Em 1979, é altura de mudar de nome: nasce a TAP Air Portugal.
Sequestro romântico
Em 1980, numa altura em que os sequestros de aviões por grupos radicais - como os extremistas alemães Baader-Meinhof ou as Brigadas Vermelhas em Itália – se sucedem, um jovem português de 17 anos, Rui Rodrigues, armado com uma pistola, sequestra um avião da TAP que ia para Faro e desvia-o para Madrid.
José Guedes era copiloto nesse voo e descreve o sequestro como uma história romântica que teve um fim à portuguesa. “Era um voo doméstico, ao fim do dia, que todos gostávamos de fazer. 40 minutos para lá, depois ficávamos 45 minutos em Faro, voltávamos a Lisboa e estava o dia ganho. Um dia fácil. Mas não foi assim que aconteceu. Logo a seguir à descolagem, entrou um indivíduo pelo cockpit dentro – na altura, a porta era numa espécie de cartão para que, em caso de emergência, os pilotos conseguissem desfazê-la com um pontapé. Estava o comandante, eu e o mecânico de voo no cockpit. Tentámos dissuadi-lo, mas não conseguimos.”
José Guedes esteve durante 46 anos na TAP, começou como comissário de bordo, em 1970, passou para mecânico de voo, a seguir copiloto e finalmente comandante. Quando o sequestro ocorreu, a forte ligação que se estabelece entre sequestrado e sequestrador ainda não tinha sido batizada como Síndrome de Estocolmo. Mas foi precisamente isso que aconteceu quando José Guedes foi escolhido como interlocutor, entregando-se nas mãos de Rui Rodrigues, porque a sua vida dependia dessa ligação.
Quando o avião aterrou em Madrid, já as autoridades espanholas sabiam que estava um pirata a bordo. E enquanto decorriam as negociações, a polícia já treinava o assalto ao avião, num aparelho idêntico da espanhola Iberia. “Teria sido um banho de sangue. O jovem pedia 20 milhões de dólares e um salvo-conduto para a Suíça, exigências que tentei negociar através do embaixador. Passada uma hora ou duas, o embaixador comunicou que o primeiro-ministro, Sá Carneiro, não iria pagar o resgate. Ficámos com um problema e eu disse ao sequestrador: ‘Temos aqui um rico sarilho, estão 80 passageiros lá atrás, o avião está cercado por forças de segurança espanholas, a situação é bastante difícil.’ E apresentei-lhe uma solução. Prometi interceder junto do meu pai, que era juiz conselheiro, mas ele tinha de entregar a arma e teríamos de regressar a Lisboa, sem os espanhóis perceberem que ele já se tinha entregue.”
Os passageiros ficaram em terra e a tripulação regressou com o pirata do ar a bordo. Quarenta anos passados, José Guedes descreve o ambiente em que decorreram as negociações com Rui Rodrigues como “uma novela mexicana de quinta categoria”. Rui Rodrigues foi condenado a dois anos de prisão, mas a pena foi suspensa. Segundo José Guedes, o jovem “teve, depois, uma carreira brilhante na área dos media”.
Desaires financeiros
O sequestro de 1980 não apaga os
Decisão de afetar 1200 milhões tem um custo de oportunidade elevadíssimo num país que não consegue verbas para as escolas
ANTÓNIO NOGUEIRA LEITE, PROFESSOR CATEDRÁTICO
desaires financeiros que acompanham a TAP ao longo da sua história e que nada têm de romântico. Fomos ouvir António Nogueira Leite, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, que olha para trás e faz uma retrospetiva minuciosa.
“Após vários anos de maus resultados nas décadas de 80 e inícios de 90, nos últimos anos dos governos de Cavaco Silva, Bruxelas aprovou, em 1994, um plano de saneamento financeiro da TAP no valor de 180 milhões de contos (cerca de 900 milhões de euros, o que corresponde a um valor substancialmente mais elevado se capitalizado para a atualidade). Um dos compromissos assumidos passava pela abertura do capital a privados quando a reestruturação chegasse ao fim. Já em 1998, era ministro da tutela João Cravinho, o governo de então escolheu a Swissair para comprar a TAP, tendo-se chegado a assinar um acordo que previa a venda de 34% do capital por cerca de 115 milhões de eusempre ros.” Este acordo também acabaria por cair por terra, em 2001, por dificuldades da empresa suíça, que faliu pouco depois.
António Nogueira Leite adianta que, após “uma procura falhada de novas parcerias, já com Fernando Pinto como CEO, a tentativa de privatização foi novamente posta em cima da mesa e a empresa entrou na lista de privatizações a concluir até 2007. Só que a empresa teve vários anos de desempenho medíocre e registou mesmo o maior prejuízo de em 2009 (mais de 250 milhões de euros de perdas). Em 2012, Passos Coelho tentou vender a empresa, mas o processo falhou e foi retomado em 2015, quando a maioria do capital foi vendida a David Neeleman e ao grupo Barraqueiro. Com a chegada do governo PS, em 2016, o negócio foi alterado, o Estado passou a ter 50% da empresa, mas a gestão executiva ficou com os privados”. De acordo com o catedrático, em todos estes períodos a empresa teve sempre resultados
bastante fracos, oscilando entre pequenos ganhos, pequenas perdas e grandes perdas, as maiores em 2009 e novamente em 2015, 2016 e 2019.
A atual pandemia apanhou a TAP num processo de expansão acelerada, ainda que com resultados já negativos em 2019 e no primeiro semestre de 2020. A perspetiva de queda abrupta no transporte aéreo e de uma recuperação muito parcial durante bem mais de um ano tornou impossível o refinanciamento da dívida e implicou o pedido de ajuda estatal. António Nogueira Leite frisa que este acordo só foi possível porque a Comissão Europeia abriu uma exceção temporária às regras de concorrência. Tal implica, como em todos os casos semelhantes, que a contrapartida à abertura para aceitar o apoio é uma forte reestruturação que viabilize a empresa e ponha de lado o cenário de novos apoios.
Para o catedrático, a questão que se põe é se Portugal, com uma dívida pública que se prevê volte a subir acima dos 130% do PIB e um défice previsto de mais de 8%, num cenário de subida do desemprego e elevada quebra do PIB este ano (que poderá vir a ser a maior desde a 2ª Guerra Mundial), deve afetar mais de 1200 milhões de euros à empresa: “É uma decisão política que assenta na importância do País ter uma companhia de bandeira com forte peso do Estado. Mas tem um custo de oportunidade elevadíssimo, num país que nem sequer consegue afetar ao ensino verbas que permitam uma razoável condição de funcionamento das escolas em 2020/21 e que tem um SNS com um dos mais baixos níveis de camas por habitante nos Cuidados Intensivos .”
Há uma parcela muito importante neste negócio que Luiz Cabral de Moncada, também professor catedrático, faz questão de lembrar: os contribuintes. “O capital estatal que vai entrar fica a servir de garantia aos credores. Não é para reestruturar nada. Mas os défices irão crescer nos anos vindouros e vão exigir muito mais do erário público. Com toda a probabilidade a TAP será uma nova edição do Novo Banco e do
BPN, com consequências desastrosas para o contribuinte português.”
E critica a interferência do Estado na companhia: “A TAP já esgotou todos os modelos de gestão do setor empresarial público - nacionalização integral com gestão direta pelo Estado, transformação em sociedade comercial controlada pelo Estado com gestão pública governamentalizada e, mais tarde, com gestão independente e abertura minoritária ao capital privado com gestão pública. Já tudo foi tentado e nada resultou. É preciso compreender que a simples presença do Estado na TAP inviabiliza uma solução racional e útil para os portugueses. A lógica estatal governamentaliza a TAP, desvia recursos que poderiam ser melhor aproveitados noutros setores, bloqueia a produtividade e lesa profundamente os contribuintes. Nunca foi tentada a solução da privatização integral. Claro que a privatização implicaria uma profunda reestruturação da empresa, com sacrifícios para muitos trabalhadores mas, ainda assim, sem consequências gravosas para os contribuintes.”
O capital que vai entrar não é para reestruturar nada. Os défices irão crescer e vão exigir muito mais do erário público
LUIZ CABRAL DE MONCADA, PROFESSOR CATEDRÁTICO