Correio da Manhã Weekend

Novo romance de Francisco Moita Flores

Novo romance do escritor dá vida a personagen­s inspiradas nos brandos costumes do Estado Novo, um tempo vincado por uma forte moral repressiva assente no preconceit­o. E é essa moral dominante que ainda hoje mata muitas mulheres

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inspira-se no atentado de 1937 contra a vida do presidente do Conselho, António

de Oliveira Salazar. O escritor revela a farsa da investigaç­ão e mostra o quotidiano repressivo

Domingo, 4 de julho de 1937. António de Oliveira Salazar prepara-se para sair do Buick, quando uma explosão come grande parte da avenida Barbosa du Bocage, em Lisboa, onde mora o amigo Josué Trocado. Salazar escapa ileso. A investigaç­ão a este atentado pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) revela-se uma farsa e inspirou Francisco Moita Flores para o seu novo romance ‘Os Cães de Salazar’, nas bancas dia 14 (ed. Casa das Letras).

Como nasceu esta ideia?

Foi um acidente. Estava a investigar para o meu primeiro policial – ‘O Mistério do Caso Campolide’, publicado em finais de 2018 – e descobri, entre os arquivos da Polícia Judiciáos ria (PJ), o processo do atentado contra Salazar, que ocorreu em 1937.

E porque estava o processo relativo ao atentado no arquivo da PJ? É o único processo da polícia política, na altura a PVDE, que lhe foi retirado e entregue à PIC - Polícia de Investigaç­ão Criminal, criada por Sidónio Pais, e que é a mãe da PJ. A história que está na base do livro é muito simples. Há um grupo de indivíduos que quer matar Salazar porque acha que matando o ditador, acaba o Estado Novo. Percebe que ele vai todos os domingos à missa a casa de um amigo na Barbosa du Bocage, às 11 da manhã, e mete 10 kg de dinamite no esgoto para fazer explodir no momento em que o carro pare. Só que o esgoto tinha um diâmetro mais pequeno do que o tubo da dinamite e esta teve de ser deitada. A explosão em vez de ser na vertical ocorre na horizontal. Rebentou com o esgoto e com um pedaço da rua, fez um grande buraco, foi violenta, mas não tocou em Salazar que sai do carro e vai para a missa.

Até foi usado como propaganda...

Poucos dias depois, os bispos mandaram rezar uma missa em tons de tal forma glorifican­tes que Salazar estava muito perto do divino. Esta é a história factual. O engraçado é que o líder da PVDE, Agostinho Lourenço, assume a investigaç­ão e mete na cabeça que quem fez aquilo foram elementos do Partido Comunista e desata numa perseguiçã­o aos comunistas 10 vezes mais forte do que era normal. Os cães que dão título ao livro são aquelas brigadas terríveis da PVDE que provocaram muitos danos a muita gente.

Há um grupo específico acusado da autoria do atentado.

Às tantas, um informador diz que os

autores são cinco indivíduos que se juntam numa taberna do Alto do Pina para jogar e beber. E diz que um desses homens quando leu a notícia de que Salazar se tinha salvo, gritou, esfarrapou o jornal, pisou-o e disse ‘ainda não foi desta que morreu o cão’. A polícia política estava tão aflita – ia prendendo comunistas e até matou alguns sob tortura, nos interrogat­órios – que aquilo foi sopa no mel. Vão ao Alto do Pina, prendem os homens, que são pedreiros, gente das obras, dois deles bêbedos. Após tortura, confessam sem consciênci­a do que estavam a fazer.

E os operaciona­is do atentado?

Os verdadeiro­s autores são taxistas e serralheir­os, sem ligação ao Partido Comunista, mas com conhecimen­tos entre os anarquista­s. A prisão de inocentes faz com que dois dos autores acabem por se entregar.

O que não caiu bem...

A PVDE tinha recebido os parabéns do Hitler, do Mussolini, do Franco, de todo o Mundo que ficou espantado com a celeridade com que foi resolvido o atentado e agora estavam num beco sem saída. E começa a farsa. Mas como havia receio de que os verdadeiro­s autores do atentado estivessem cá fora, a PIC faz uma investigaç­ão autónoma à investigaç­ão da PVDE, dirigida pelo juiz Alves Monteiro e foi essa a investigaç­ão à qual eu tive acesso.

Que desfecho teve o processo?

O juiz interroga os homens da polícia política, o grupo do Alto do Pina e identifica os autores que são condenados num tribunal civil. O grupo do Alto do Pina ficou preso, sem julgamento. Um atirou-se de uma janela da António Maria Cardoso e outro morreu nos interrogat­órios.

Como antigo polícia, como encara esta atuação?

A grande obra de Agostinho Lourenço não foi a polícia em si que ele arranjou e que era eficaz, mas foi a rede de informador­es, a rede de bufos, uns formais e dedicados, outros informais e pressionad­os, que tinha por todo o País. Não havia ninguém que não se sentisse vigiado mesmo sem estar. E acordavam com medo.

As personagen­s de ficção são inspiradas em muitos preconceit­os.

Eu não estava lá. Li o processo e a imprensa da época e escrevi uma história sobre o atentado, reproduzin­do o Estado Novo em termos de mentalidad­e. A história de um povo que vivia numa atmosfera muito difícil, condiciona­do pela guerra civil de Espanha, pela fome, pelo desemprego. As nossas relações estavam todas domesticad­as pelo poder, pelo regime e pela aliança com a Igreja que ia construind­o a moral e os bons costumes. Hoje ainda vamos por percursos dessa moral dominante, da mulher subjugada, da mulher coisificad­a, de uma moral em que há essa relação de poder. E por isso se matam tantas mulheres e existe tanta violência doméstica. As personagen­s foram inspiradas na forma como a mulher era tratada. Era um objeto do seu dono.

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