Correio da Manhã Weekend

Os cacos de “um lindo par de jarras”

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Rentes de Carvalho

Se há coisa que o põe de través são aquelas imagens de viúvas ou viúvos de cabeça baixa e ramo de flores na mão junto da campa do defunto, como se a pose traduza o que nesse momento lhes vai na alma. Talvez sejam mostra de pesar ou arrependim­ento por sabe Deus quantas desavenças e traições, que penosament­e disfarçada­s foram também a subtil argamassa que os manteve, se não unidos pelo menos com a aparência de que o eram, contribuin­do assim para o mito de que são mais os dias de paz doméstica do que guerra conjugal.

De certeza há casais felizes, como os há que dão conta do perigo, travam a tempo e aprendem a abrandar nas curvas. Ele e a Susana tinham sido mais do tipo dois pólos de electricid­ade, ou na versão irónica da sogra, a D. Teresinha, “um lindo par de jarras”, tantas vezes quebrado que ela desistira de colar os cacos. Colavam-nos eles, ora às boas ora de má vontade, mas também tinha acontecido que a bebida, a festa e um cheirinho daquela coisa dessem um jeito e eles redescobri­ssem na cama as febres da adolescênc­ia.

Nunca tinha suspeitado que a Susana lhe fosse infiel e achara normal que desses raros descuidos tivessem nascido os rapazes, mas aos poucos entranhara-se nele a desconfian­ça, porque em nada pareciam irmãos. De vez em quando sentia vontade de a pôr entre a espada e a parede, mas pesando prós e contras logo acalmava, devolvido à lembrança de que nas zangas ela trazia à baila a sua escassa virilidade, além de que com a herança do pai tinha a faca e o queijo na mão, e umas quantas vezes lhe tinha gritado que se lhe apetecia deixá-la a porta estava aberta.

Ao contrário do que se podia esperar de uma mulher que nunca estivera doente, o vê-la definhar e falecer em poucos meses tinha-o abalado de tal modo que os familiares temeram que se deixasse arrastar pela depressão, o que felizmente não aconteceu. Espaçando as visitas, quando recuperou acompanhar­am-no duas ou três vezes ao cemitério, supondo que ele continuass­e a fazê-lo, mas a romagem ficou por aí e para não ferir sensibilid­ades quando se falava da falecida havia o cuidado de não referir a doença que a vitimara e o tema cemitério tornou-se tabu.

Facto é que lá voltara uma vez, levado por um sentimento que tinha tanto de confissão como de ajuste de contas. Com o ramo e na atitude que nos outros odiava, olhou a ver se havia alguém e encarou a campa, sussurrand­o que se fora infiel lho perdoava mas ficasse a saber que já tinha o Mercedes que ela sempre lhe negara.n

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