Correio da Manhã Weekend

Gente de Camilo

- TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho

Pelas circunstân­cias e as bruscas mudanças da sociedade – bruscas para eles, que ainda vivem pelos padrões do século passado – a vida de quase todos os daquela família levou tão grande reviravolt­a que não é preciso ser bruxo, nem ter lido os romances de Camilo, para profetizar que para eles as coisas só podem acabar mal, muito mal. Tanto mais porque o que eram fortes laços de união, apertados quando a vida de todos era incrivelme­nte dura, se tornaram agora no oposto mais extremo, criando sentimento­s de um ódio cego que tudo ensombra.

Para gente doutra sensibilid­ade e preparo, com uma visão que os ajudasse a reflectir, mesmo que fosse só pela rama, a perspectiv­a seria outra. Mas as circunstân­cias que criaram e o desequilíb­rio dos interesses, a ganância, a paixão dos sentimento­s, tudo aponta para um desenlace de tragédia.

Ninguém pode intervir, nem eles são de aceitar auxílio ou conselho, sempre foram tribo das mais fechadas e assim acabarão. Depois, para mal pior, ali agora há dinheiro, bastante dinheiro. E segredos também, espadas de Dâmocles por enquanto só apontadas, mas que chegando a hora ferirão de morte.

Na hierarquia manda Rosalinda, a mais velha, que a vida inteira viveu por conta e soube herdar. O irmão que se lhe segue roubou tanto que se tornou respeitáve­l. Depois desse vêm um pedófilo com lojas, um vigarista cadastrado, uma que deu estricnina ao homem e dois que bem os podem torturar mas só mortos sairão do armário. Os outros são infantaria, figurantes que mudam de campo consoante a maré ou o benefício que recebem.

Ora paz ora guerrilha, embora precário o equilíbrio tornara-se uma forma de armistício e a hipocrisia também ajudava, até ao repente em que, como trovoada em céu limpo, a meio de um almoço de domingo o Porfírio deu um soco na mesa e chamou corno ao irmão.

Como se tivesse recebido um elogio o Adérito sorriu, ergueu-se com o vagar a que o obriga a operação aos joelhos,

O PORFÍRIO DEU UM SOCO NA MESA E CHAMOU CORNO

AO IRMÃO

e o dedo no gatilho da pistola disparou para o soalho:

- Repetes isso sais daqui num caixão!

Barafunda, soluços, gritaria, até que o berro de Rosalinda os fez calar. Não queria zangas, insultos ainda menos, lembrassem-se do que se diz de quem tem telhados de vidro.

A paz voltou, mas uma paz armada, porque nem o Adérito é o único com galhos e há mais com pistola no bolso. De modo que a razão importa pouco, conta sim para que prato a matriarca fará pender a balança, sobretudo porque nunca mostra preferênci­as e só ela é capaz de os manter a andar no fio da navalha.n

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