Correio da Manhã Weekend

O jornalismo já interioriz­ou a obediência?

- EDUARDO CINTRA TORRES ectorres@cmjornal.pt TEXTOS ESCRITOS COM A ANTIGA GRAFIA

Ocarro do ministro Cabrita matou um trabalhado­r na A6. O carro do primeiro-ministro Costa fez Porto-Lisboa, comprovada­mente, em duas horas. O ministro do Ambiente, Fernandes, num acto de cobardia repugnante, atirou ao seu motorista a culpa da velocidade excessiva do carro oficial em que seguia. Os abusos velozes dos políticos no poder são antigos e nem com a passagem do tempo beneficiam do processo democrátic­o e do processo civilizaci­onal. Dentro dum carro do Estado um governante­s sente-se grande e a alta velocidade comprova a sua eminente grandeza.

A propósito, lembro-me, em 1986, quando Soares e Cavaco estiveram em Londres para comemorar o centenário da aliança luso-inglesa e o programa incluiu dois eventos ao fim da tarde, um na residência oficial do primeiro-ministro, então Margaret Thatcher, outro na Embaixada de Portugal. Eu e outros jornalista­s, mal acabou o primeiro evento, entrámos num táxi para seguir de Downing Street para a embaixada. Lá ia pachorrent­o o carro na tarde nocturna de Londres quando vejo, no carro em frente, a Dama de Ferro! Era ela, com um membro do seu governo, sem guarda-costas — em tempo de terrorismo do IRA —, sem motorizada­s, sem automóveis em fila indiana, em velocidade cordata! Era ela, uns três metros à minha frente! Virei-me para o taxista e disse: “Follow the prime-minister!” Entre nós esta situação não seria possível. Em termos de pluralismo e de respeito pelo outro, estamos a 300 anos de distância da Grã-Bretanha. Não são só os políticos, contudo.

A cultura dos poderosos e dos obedientes está inscrita também no jornalismo. Há dias, Costa deu uma conferênci­a de imprensa com Cabrita ao lado. Era da tutela de Cabrita: prevenção de incêndios. Para não responder a perguntas sobre o acidente, Cabrita não falou. Os assessores informaram que afinal era só uma “declaração à imprensa”, e os jornalista­s da RTP, SIC, TVI, etc., todos menos o da CMTV, amocharam, aceitando que o seu jornalismo é ser pé de microfone do poder. À saída, uma jornalista da CMTV procurou perguntar a Cabrita sobre a velocidade a que seguia no carro que matou um trabalhado­r: um segurança afastou a jornalista, desrespeit­ando a lei, e uma assessora de Cabrita foi mais longe, quase a agredindo. Já em 5 de Julho Costa, que faz Porto-Lisboa em duas horas, se recusara a falar sobre a velocidade a que seguia Cabrita. Quando o poder não presta contas à opinião pública, há uma limitação da democracia. E o jornalismo hegemónico da RTP, SIC e TVI, etc. está cada vez mais obediente, a funcionar na lógica do poder e não na lógica da independên­cia em relação ao poder.n

QUANDO O PODER

NÃO PRESTA CONTAS À OPINIÃO PÚBLICA, HÁ UMA LIMITAÇÃO DA DEMOCRACIA

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