OS EFEITOS DE UM ANO E MEIO COM FOME DE TOQUE
A procura de parceiro sexual através das aplicações e a participação em festas sexuais são tendências que cresceram nos últimos 18 meses e que se vão manter. A vacinação ainda não nos devolveu a vida como ela era
No seguimento das últimas indicações da Direção-Geral da Saúde, que recomendam o cancelamento ou a suspensão de eventos em locais ou recintos públicos ou privados, o Heaven Can Wait - em português, O Céu Pode Esperar - está de portas encerradas, lê-se no site do clube de ‘swing’. Carlos Soares, proprietário da casa de festas privadas e de troca de casais, conta que, também ali, “entre o fim de semana de 15 de março de 2020 e o fim do primeiro confinamento, o ‘lockdown’ foi total”. “Houve um choque, pois ninguém sabia o que era a Covid. Ligeiramente antes do verão, quando o Governo levantou as restrições, a seguir à primeira vaga, houve reatamento das festas, com muita cautela, receio até. Estamos a falar de festas liberais, onde há um grande contacto físico. Numa fase inicial optava-se pela máscara e por um ciclo fechado de amigos e, por incrível que pareça, entre as pessoas que frequentavam o nosso espaço e os nossos amigos, uns e outros, regra geral, entre os 35 e os 45/50 anos, não houve um único caso de Covid. Mas é claro, em 2020 tivemos uma quebra no negócio na ordem dos 80%, também devido ao facto de uma fatia muito elevada dos clientes serem estrangeiros, que fazem férias em Portugal para vir ao nosso clube, e que deixaram de poder viajar. Desde este 15 de abril verifico que todos os nossos clientes estão vacinados e perguntam se já estamos abertos ou quando vamos abrir. Muitos até nos enviam o cartãozinho da vacina ou o certificado digital por WhatsApp a confirmá-lo, com uma certa alegria”, diz Carlos Soares, que acredita que no início do último trimestre do ano começará a “haver uma corrida à liberdade” – talvez não seja despiciente que nesta avaliação pese a reabertura do espaço de que é proprietário.
As regras sanitárias impostas pelo SARS-Cov-2 acentuaram a tendên
A questão sexual, a necessidade biológica, sobrepôs-se à questão sanitária da pandemia
CATARINA LUCAS PSICÓLOGA ESPECIALIZADA EM SEXOLOGIA
cia dos últimos anos; a popularidade das aplicações de encontros, sobretudo entre os utilizadores da geração Z - os nascidos entre 1997 e 2015. Joey Levin, Shar Dubey e Gary Swidler, respetivamente presidente do conselho de administração e presidentes executivos do Match Group - dono do Tinder e de outras 45 marcas ligadas a relacionamentos virtuais -, não têm razão para reclamar da pandemia. Este ano, o grupo já chegou a valer mais de metade do valor de mercado da petrolífera brasileira Petrobras na bolsa de Nova Iorque, segundo o ‘The New York Times’.
O presidente da maior economia do Mundo, que está com dificuldade em prosseguir com a campanha de vacinação em estados de maioria negacionista, percebeu o poder da alteração fundamental deste ano e meio - a comunicação online, até para resolver questões da sexualidade humana. A Casa Branca estabeleceu parcerias com as plataformas de encontros para incentivar os norte-americanos a vacinarem-se contra a Covid-19 e, desde este último mês de maio, os utilizadores comprovadamente vacinados do Tinder, Hinge, OKCupid, BLK, Chispa, Plenty of Fish, Match, Bumble e Badoo ganham acessos ‘premium’. Um pouco por todo o Mundo, a tendência estabelece-se; nos perfis das aplicações de encontros no Reino Unido, por exemplo, passou a ser comum a indicação “fully vaccinated, not yet vaccinated or ‘prefer not to disclose’” (completamente vacinado, ainda não vacinado, prefiro não divulgar).
“A questão sexual, a necessidade biológica, sobrepôs-se à questão sanitária. O critério do completamente vacinado já está instalado e é perguntado entre parceiros, tal como noutras esferas; restaurantes, hotéis ou viagens. Esta forma de as pessoas se relacionarem, de conhecerem outras através do digital, já estava em curso antes da pandemia, mas agora veio para ficar. No fundo, começamos a não saber muito bem como socializar ao vivo, aliás estou a atender um rapaz que me pergunta: ‘Como é que eu abordo uma rapariga na rua?’ É claro que isto altera profundamente o conceito de erotismo, pois o meio de comunicação digital, que se define pela rapidez, não dá espaço a que se fantasie ou erotize o outro. Por outro lado, nas redes, pelo WhatsApp, por exemplo, partilham-se coisas que ao
Muitos enviam um cartãozinho com a vacina ou o certificado digital pelo WhatsApp, com uma certa alegria
CARLOS SOARES PROPRIETÁRIO DE UM CLUBE DE SWING
vivo seriam sujeitas a maior contenção”, diz Catarina Lucas, psicóloga especializada em Sexologia e Terapia do Casal.
A inibição na procura do parceiro, pontual ou regular, provocada pelo vírus - o medo de sair para conhecer pessoas ou, agora, a questão “devo pedir um teste negativo à pessoa?” deu uma nova dimensão às aplicações de encontros logo em 2020, mesmo em épocas de confinamento. “As pessoas fizeram encontros mais caseiros, até festas em grupo, muitas vezes infringindo as normas. Esta forma de relacionamento começa a ser transversal a todas as idades, embora os comportamentos de risco sejam mais típicos entre os 20 e os 30 anos. Neste momento, as pessoas já perceberam que vão viver com isto durante muito tempo e começam a habituar-se a conviver com este risco, como também se habituaram a mil outros.” Até porque riscos como as DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis), que nas gerações mais velhas tiveram um enorme impacto, nomeadamente a sida, cujo primeiro caso foi detetado em 1981, não podem ser comparadas à infeção por SARS-Cov-2: “a Covid não é crónica, na maior parte das vezes provoca uma infeção leve e, sobretudo, não tem conotação social negativa”, diz Lucas, que sublinha o que já está à vista de todos - a ocorrência de comportamentos mais eufóricos, geralmente por parte das gerações mais jovens, depois da reabertura dos bares. “Apesar da epidemia de solidão que a Covid provocou, muitos tiveram atividade sexual fora do núcleo doméstico, em festas, parte deles pela primeira vez na vida. Coisas do género: ‘Festa em casa da pessoa X, vens?’ A solidão, particularmente daquelas pessoas que viviam sozinhas, pesou nessas decisões. Sei de um jovem a quem o facto de estar sozinho levou a procurar numa aplicação outra pessoa para encontros sexuais e dessa pessoa passou para um grupo, que se reunia muitas vezes em transgressão, que a determinado momento acabou por ter um caso de uma DST e uma série de infeções por Covid.”
Doutorado em Psicologia pela Universidade de Lisboa e psicoterapeuta desde 1985, autor de livros como a ‘A Teoria Geral dos Estúpidos’ (ed. Livros Horizonte) ou ‘O Livro da Ignorância’ (ed. Nascente), Vítor J. Rodrigues observa que temos andado “instrumentalizados para recear uma boa parte daquilo que costumava tornar-nos humanos”. “As autoridades têm feito tudo para obrigarem à vacinação, sem assumirem frontalmente uma ditadura sanitária plena. Expressões como ‘fully vaccinated’ tendem a fazer crer, erradamente, que a outra pessoa é ‘segura’. Segura por concordar comigo? Segura por ser definida por ter vacina, como um boi ou uma vaca, em lugar de ser definida por ser correta, leal, próxima, sensível, afetiva, atraente, magnética, sensual? O que está a acontecer é, para mim, um crime global contra os afetos, a profundidade nas relações, e contra a própria definição do que seja um ser humano, passando a ser definido por características superficiais e corporais. Estamos a ser reduzidos à sobrevivência e ao seu instinto e, como tal, animalizados. Isto é um recuo civilizacional global. O preservativo dificultava um bocado a troca corporal de fluidos e a espontaneidade sexual; a vacinação e os certificados dificultam a troca de humanidade, intimidade emocional, respeito mútuo pelo ser humano que é infinitamente mais que vacinado ou não. Mas, do ponto de vista veterinário, isso é muito relevante”, ironiza.
Parceiro para a vida
João Simões, coordenador nacional da Amore Nostrum, uma agência matrimonial com sede no Porto, com quase duas décadas de atividade, explica que logo na reabertura, em meados de junho de 2020 - “ainda sem saber como as pessoas iam reagir, pois se estavam mais sozinhas poderiam ter medo de se voltar a relacionar” -, registaram uma procura maior do que o habitual pelo par perfeito, conforme anunciam. “O isolamento imposto pela pandemia provocou uma necessidade muito grande de se encontrar alguém. Por isso, em 2020, quando se começou a perspetivar um segundo confinamento, os que já eram clientes e os que nos procuravam pela primeira vez começaram logo a manifestar uma certa ansiedade porque não queriam passá-lo novamente sozinhos. A partir de certa altura começámos a permitir que as pessoas se conhecessem de modo virtual, embora com a intermediação habitual de um consultor nosso, mas a maior parte rejeitou a opção, pois tinha passado a valorizar ainda mais o contacto pessoal”, conta o administrador da agência onde, logo nas primeiras consultas deste ano, o tema das vacinas começou a ser recorrente entre os clientes que maioritariamente têm entre 45 e 60 anos.
“A pandemia fez sobressair as desvantagens da solidão face a um relacionamento sólido. Notámos o aparecimento de um novo público, muito específico, que é aquele que está muito bem resolvido profissionalmente - gestores, advogados, profissionais liberais - que tradicionalmente tendiam a desvalorizar os relacionamentos estáveis. Penso que mesmo com o fim da pandemia, essa maior necessidade de um relacionamento sério continuará, bem como os relacionamentos casuais através das aplicações, que não é o nosso ‘target’. Não tenho também dúvidas de que o aumento de separações e de divórcios neste ano e meio nos trará mais clientes.” Esperança justificada pelo facto de a agência ter registado um aumento de novas consultas na ordem dos 30 a 40% no fim de cada confinamento. “O aumento na procura dos nossos serviços teve primeiro como foco a solidão que se traduzia na necessidade de acompanhamento psicológico. Notávamos a existência de angústia, mas também de quadros depressivos. O ser humano não foi feito para estar sozinho”, reforça a psicóloga Carolina Almeida, que trabalha há nove anos na agência. Investigadora do Instituto Kinsey nome do autor dos estudos pioneiros sobre sexualidade feitos na Universidade de Indiana (EUA), nos anos 1940/50, Amanda Gesselman também contraria a ideia de que a solidão provocada pela crise sanitária traga sobretudo sexo ocasional: “A pandemia motivou os solteiros a procurar mais parceiros do que relações ocasionais.” Ideia apoiada no estudo do instituto que mostra que, num universo de solteiros entre os 18 e os 45 anos, 52% diz preferir agora compromissos; 10% espera encontros sem compromisso, enquanto os restantes não respondem ou não sabem. “É claro que haverá pessoas que viverão as experiências de uma vida quando for seguro fazê-lo, mas atualmente é notório que as relações sem amarras estão mais em desuso do que alguma vez estiveram”, defende Gesselman.
A analogia imediata para este ano e meio de vida com o SARS-Cov-2 é a gripe espanhola de 1918 – embora a mortalidade tenha incidido, ao contrário da Covid, entre os jovens adultos dos 20 aos 40 anos de idade. Um estudo sobre aquela época - que ex
clui os efeitos da I Guerra Mundial mostra uma queda nos nascimentos em países como Estados Unidos da América, França e Suécia. Os autores de ‘Covid-19: Why There Will Be No Baby Boom’, publicado em abril de 2021, defendem que na vontade de iniciar ou de manter um relacionamento estável que eventualmente conduza a uma inversão na taxa de natalidade - em queda abrupta na maioria dos países ocidentais -, será determinante também a forma como nos meses e anos seguintes se fará a recuperação económica depois do fim da pandemia.
A psicóloga clínica Bárbara Ramos Dias, especialista noatendimento da adolescência e dos jovens adultos, narra uma outra ideia de 2020 “os relatos quetenhotido são de pessoas que se encontravam na mesma, só que na rua, e até mesmo gente comrelacionamentos não assumidos, cujo desespero provocado pelo isolamento levou a correr aindamais riscos. Obviamente que
as pessoas mais ansiosas e outras patologias associadas nem sequer saem de casa, quanto mais para conhecer alguém. Foi um bocadinho aquela história do oito e do 80: aqueles a quem a Covid provocou ansiedade ou que já a tinham não saíram e muitos continuam sem sair;osoutrosprocuraram ter a vida de sempre, só que clandestinamente. Devido ao encerramento de espaços como hotéis, restaurantes, bares e discotecas, até pessoas casadas passaram a optar pela rua, pela casa de outros ou por festas particulares. Não podemos adivinhar o que se pode seguir a esta fase em que nos sentimos ainda presos e isolados. Posso afirmar que as pessoas têm sede de viver e de experimentar coisas diferentes, como se estivessem estado adormecidas este tempo todo. Mas não há forma de prever o que daqui virá”, diz Bárbara Ramos Dias, que não ignora o impacto dos estados ansiosos provocados pela pandemia “cada vez mais tenho mais pessoas com ataques de pânico”- e sublinha que nem sequer o certificado de vacinaçãopoderáajudá-losaencetar novos relacionamentos.“Háadolescentes com pais ansiosos e pessoas com 40 e 50 anos que ainda hoje estão em casa, com receio do contágio. Houve pessoas que não tinham qualquer quadro clínico que desenvolveram ansiedade por estarem obrigadas a casa, ao teletrabalho, aos filhos, ao marido, à mulher”, descreve Bárbara Ramos Dias, observando que a herança futura deixada por estes tempos estranhos poderá ser uma maior capacidade de resiliência e de lidar com a frustração. “Aprendemos que nada é garantido oucontrolado.”
Crime contra os afetos
A pandemia de Covid-19 afetou todos os aspetos da existência humana. O isolamento imposto pela ne
As relações sem amarras estão em desuso
JOÃO SIMÕES AMORE NOSTRUM O volume mundial de vendas de brinquedos sexuais vai passar dos atuais 28 mil milhões de euros para
52 mil milhões em 2026
Orgias não vão gerar sensualidade
VÍTOR J. GONÇALVES
PSICOTERAPEUTA
do controlo da disseminação do vírus impulsionou o comércio online, nomeadamente pois é disto de que aqui se fala - daquele relacionado com a sexualidade: brinquedos sexuais, das bonecas insufláveis à lingerie. Está ainda por estudar o impacto da banalização do uso destes brinquedos nos relacionamentos e na construção da intimidade, mas pelo menos sabemos a expressividade dos números: até 2026, o volume mundial de vendas vai passar dos atuais 28 mil milhões de euros para 52 mil milhões.
O impacto das regras da pandemia é, e será, imenso, defende Vítor J. Gonçalves. “As pessoas vão tentar supercompensar a frustração afetiva e sexual de longo curso, mas isso não impede os mecanismos de trauma coletivo e individual nem as memórias duradouras que geram. Também não impede a cisão social que está a acontecer. Orgias não vão gerar sensualidade erótica refinada, do mesmo modo que doses elevadas de pão e água não fazem gourmets e do mesmo modo que pão e circo não fazem verdadeira Cultura. Deixar o gado pastar não é o mesmo que tratá-lo realmente bem…”, diz o psicoterapeuta, acrescentando que tem atendido bastantes jovens “a queixarem-se de que, tendo perdido o relacionamento que tinham, ficou extremamente difícil conhecer novas pessoas - porque daria jeito poderem ver-se, tocar-se… Encontrar-se fisicamente”.
“Até o estímulo erótico dos corpos se perde um bocado quando estamos a ver só um pedaço físico da outra pessoa no computador. A confiança que se ganha, bem como a qualidade do contacto, perdem-se um bocado face a um ecrã. Mesmo as imagens de corpo inteiro não substituem a presença de um corpo realmente habitado por uma pessoa. Por outro lado, a ansiedade ampliada constantemente pelo bombardeamento de medo aumenta as incessidade seguranças, coisa que muitas pessoas têm expressado, e também os receios de perda de competência social, relacional e erótica. As pessoas que já tinham baixa autoestima face a relacionamentos têm atravessado um tempo especialmente desafiante”, conclui.
O Summer of Love (verão do amor) aconteceu em 1967, durante o verão do Hemisfério Norte. Começou com a manifestação pela paz, a 15 de abril, em Nova Iorque, que reuniu 300 mil participantes para protestar contra a Guerra do Vietname, mas rapidamente se transformou em contracultura e alastrou a outras cidades americanas e europeias. A revolução ‘hippie’ expressava-se também através do amor livre. A nova era, em que as pessoas “fariam amor, não guerra”, não tem paralelo com aquilo que muita imprensa anglo-saxónica vaticinava já para estes meses, mas que o aparecimento da variante Delta e os atrasos na vacinação um pouco por todo o Mundo encobrem o sensacionalismo do cálculo. Também não é de esperar que o efeito da vacinação completa para o SARS-Cov-2 e a sonhada imunidade de grupo tenha paralelo com o aparecimento da pílula. Na altura, a aprovação do pequeno comprimido pela FDA americana ajudou ao ‘summer of love’ histórico e, provavelmente, irrepetível e à verdadeira revolução sexual, que permitiu a emancipação da mulher. E, no entanto, talvez não seja por acaso que ao hino de 2020 ‘Jerusalema’, da autoria de um rapper sul-africano que se deixou influenciar pela religiosidade do gospel, tenha agora sucedido nas rádios portuguesas e nas de outros países europeus como que a antecipar (ou a desejar) a festa, o hit ‘Que calor’, de Limiñanas e Laurent Garnier.
O autor destas ilustrações é o ilustrador premiado Vasco Gargalo, colaborador semanal da ‘Domingo’. O cartoon da Estátua da Liberdade que atira Trump com uma fisga, publicado na revista depois das eleições nos EUA, está entre os 16 finalistas do European Press Prize.