O VÍRUS E A ORDEM NAS RUAS
A Pátria tem necessidade de manifestar a sua fé nas hierarquias e nos astrólogos
Tal como os adolescentes de antanho, Dona Elaine colecciona cromos. Não os dos heróis da História de Portugal, de jogadores de futebol ou de estrelas de cinema, reunidos em cadernetas – mas de epidemiologistas e médicos que aparecem na televisão. Durante o meu pequeno-almoço que, quase sem variações, é tomado à mesa da cozinha (único lugar onde o café de cevada recorda os hábitos e as memórias de há muito tempo), a governanta deste eremitério de Moledo fustiga a minha falta de curiosidade acerca das coisas do mundo informando-me que o Dr. X defende a vacinação de toda a gente, que outro especialista alerta contra perigos inefáveis, que outra médica entende estar a aproximar-se o Dia do Juízo Final, que uma certa socióloga (Dona Elaine ainda não estabelece barreiras entre ciência e astrologia) estava muito zangada ao comentar as medidas profilácticas mais recentes, que um jovem médico de barbas respeitáveis fez previsões moderadas – e, finalmente, que o Senhor Almirante estava, como sempre, muito bem parecido e que, com o Senhor Almirante ao leme, a Pátria estaria bem mais protegida e nunca se estatelaria contra os rochedos do Forte da Ínsua, diante das dunas entre Moledo e os primeiros choupos de Caminha. Eu manifesto geralmente a minha concordância e espalho mais uma noz de manteiga na torrada, à revelia da Dra. Teresa, a minha médica de Venade, que recomenda moderação por causa do colesterol.
De vez em quando, Dona Elaine folheia esta lista de personalidades televisivas com um desvelo semelhante ao da Tia Benedita quando assistia ao desfile dos andores da Semana Santa de Braga. Porém, para Dona Elaine (ao contrário da matriarca miguelista dos Homem, que achava que a Quaresma tinha princípio e fim), o vírus é uma dependência da eternidade e, em vez dos comentadores de futebol ou dos especialistas em economia, as televisões deveriam competir para apresentar higienistas e epidemiologistas em todos os debates – suponho que mesmo nos de economia e de futebol.
Naturalmente que exagero um pouco. Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, é afinal uma alma generosa e preocupada com o destino dos seus semelhantes mas, tal como acontecia com o dr. Salazar, preferia que eles se mantivessem nas suas circunscrições, discretos e a salvo da tentação dos vírus da época, desde o comunismo ao deboche e à leitura de imprensa estrangeira. Não que Dona Elaine seja, por assim dizer, salazarista; a pátria é que, periodicamente, tem necessidade de manifestar a sua inabalável fé nas hierarquias e nos astrólogos, bem como a velha confiança nos caudilhos que prometem ordem nas ruas e saúde para os nossos corpos, ai deles. Não somos nada, é o que é.