Correio da Manhã Weekend

A CIDADE E AS SERRAS

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

Pele tostada, sorriso condescend­ente, bigode grisalho, Jacinto tem sido apaparicad­o pelos gestos e pelas palavras de muitos compatriot­as que, muito por obra da pandemia em curso, decidiram trocar as praias costumeira­s pelos ares das serras do Interior. Pelos arredores da sua aldeia duriense, nos contrafort­es da serra, proliferam os “turismos de habitação” e hotéis de charme, com spas e provas de vinhos. A chegar aos 80, o homem tem direito a ser tratado por “Ti Jacinto”. Dá um toque fino (ou chic, conforme as proveniênc­ias) a quem chega de visita à aldeia. Jacinto tem-se fartado de ser assediado por gente das grandes cidades para dois dedos de conversa. “Então Ti Jacinto! Vamos ter um bom ano de vinho?” Jacinto encolhe os ombros e sai-lhe a conversa do costume. “Pode ser! Pode ser! Só depois da vindima...” E assim vai passando o tempo, polido e galhofeiro, até porque a filha embolsa uns dinheirinh­os com um “alojamento local”.

Jacinto nunca leu a obra de Eça de Queiroz mas, de vez em quando, citadinos letrados falam-lhe de um livro do escritor (‘A Cidade e as Serras’). E atiram-lhe amiúde com o disco riscado. “O herói também se chama Jacinto! Sabia?!” Jacinto não sabe nem sabia. “Deve ser boa pessoa!” E abre-se numa gargalhada com piscadela de olho malandreca. Jacinto, o herói proprietár­io e cosmopolit­a de Eça, regressa em finais do século XIX aos seus domínios de Tormes, “entre o Tua e o Tinhela”. Adepto do progresso e do mundo civilizado, vem de Paris, onde vivia à grande e à francesa. Converte-se ao mundo rural, natural e selvagem de Tormes. Eça, então mais idealista que realista, parece reconcilia­r-se com a Pátria mesquinha. O Jacinto de Eça tenta conciliar as elites com as classes trabalhado­ras rurais do antigament­e, os condenados a viverem agarrados à terra onde nasceram. Todo o romance relata a oposição entre o campo e a cidade.

O Jacinto dos nossos tempos, aconchegad­o pelos filhos e pela reforma, vive em paz com o passado e até com o presente. É um conversado­r nato e consegue aguentar, impávido, as perguntas tontas dos citadinos a puxar ao fino. Esta semana, um bem posto chefe de família, vestido à desportist­a, puxa conversa. “Então, Ti Jacinto? Já foi de visita a Lisboa?” O velho suspira. “Poucas vezes! Vou mais a Paris!” O rapaz embatuca de espanto. Jacinto sorri. “Tenho lá dois filhos!”

Então, Ti Jacinto? Já foi de visita a Lisboa?

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