A CIDADE E AS SERRAS
Pele tostada, sorriso condescendente, bigode grisalho, Jacinto tem sido apaparicado pelos gestos e pelas palavras de muitos compatriotas que, muito por obra da pandemia em curso, decidiram trocar as praias costumeiras pelos ares das serras do Interior. Pelos arredores da sua aldeia duriense, nos contrafortes da serra, proliferam os “turismos de habitação” e hotéis de charme, com spas e provas de vinhos. A chegar aos 80, o homem tem direito a ser tratado por “Ti Jacinto”. Dá um toque fino (ou chic, conforme as proveniências) a quem chega de visita à aldeia. Jacinto tem-se fartado de ser assediado por gente das grandes cidades para dois dedos de conversa. “Então Ti Jacinto! Vamos ter um bom ano de vinho?” Jacinto encolhe os ombros e sai-lhe a conversa do costume. “Pode ser! Pode ser! Só depois da vindima...” E assim vai passando o tempo, polido e galhofeiro, até porque a filha embolsa uns dinheirinhos com um “alojamento local”.
Jacinto nunca leu a obra de Eça de Queiroz mas, de vez em quando, citadinos letrados falam-lhe de um livro do escritor (‘A Cidade e as Serras’). E atiram-lhe amiúde com o disco riscado. “O herói também se chama Jacinto! Sabia?!” Jacinto não sabe nem sabia. “Deve ser boa pessoa!” E abre-se numa gargalhada com piscadela de olho malandreca. Jacinto, o herói proprietário e cosmopolita de Eça, regressa em finais do século XIX aos seus domínios de Tormes, “entre o Tua e o Tinhela”. Adepto do progresso e do mundo civilizado, vem de Paris, onde vivia à grande e à francesa. Converte-se ao mundo rural, natural e selvagem de Tormes. Eça, então mais idealista que realista, parece reconciliar-se com a Pátria mesquinha. O Jacinto de Eça tenta conciliar as elites com as classes trabalhadoras rurais do antigamente, os condenados a viverem agarrados à terra onde nasceram. Todo o romance relata a oposição entre o campo e a cidade.
O Jacinto dos nossos tempos, aconchegado pelos filhos e pela reforma, vive em paz com o passado e até com o presente. É um conversador nato e consegue aguentar, impávido, as perguntas tontas dos citadinos a puxar ao fino. Esta semana, um bem posto chefe de família, vestido à desportista, puxa conversa. “Então, Ti Jacinto? Já foi de visita a Lisboa?” O velho suspira. “Poucas vezes! Vou mais a Paris!” O rapaz embatuca de espanto. Jacinto sorri. “Tenho lá dois filhos!”
Então, Ti Jacinto? Já foi de visita a Lisboa?