Correio da Manhã Weekend

‘ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA A INTIMIDADE DE UM INTELECTUA­L INDOMÁVEL’

Livro dos filhos de António José Saraiva revela facetas desconheci­das do historiado­r

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É O TÍTULO DO LIVRO ESCRITO PELOS FILHOS DO AUTOR DA ‘HISTÓRIA DA CULTURA EM PORTUGAL’ QUE REVELA FACETAS DESCONHECI­DAS DA VIDA DAQUELE ‘SÁBIO DISTRAÍDO’. O ENSAÍSTA, UM DOS MAIS ORIGINAIS E ESTIMULANT­ES PENSADORES DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO PASSADO, CHEGOU A ATIRAR COM UM TINTEIRO À CABEÇA DE VITORINO NEMÉSIO E CONFESSOU QUE NUNCA CONSEGUIRA COMPREENDE­R AS MULHERES

Nunca teve carta de condução, gostava de mel e de queijos, não apreciava vinhos nem roupa, pintava muito bem a aguarela, nada ligava ao dinheiro (pedia 10 tostões aos filhos para ir de elétrico à Baixa), via pouca televisão, ignorava as burocracia­s. O intelectua­l que se tornou famoso pela ‘História da Literatura Portuguesa’, escrita em parceria com o seu amigo Óscar Lopes e que teve 21 edições entre 1955 e 2017, é apresentad­o como um “sábio distraído” no livro ‘António José Saraiva – A Intimidade de um Intelectua­l Indomável’ (ed. Gradiva), escrito pelos filhos António Manuel (arquiteto paisagista), José António (ex-diretor dos semanários ‘Expresso’ e ‘Sol’) e Pedro António (estudou Psicologia).

Celebrar o centenário do nascimento do pai com uma conferênci­a ou uma exposição era a ideia original de António Manuel P. Saraiva. Mas José António Saraiva, alegando que essas iniciativa­s têm um público limitado, sugeriu antes um livro, com maior alcance e que permaneces­se. O irmão mais velho não só aceitou a proposta como seria o que mais escreveu na fotobiogra­fia.

Nascido a 31 de dezembro de 1917, António José Saraiva foi o segundo dos seis filhos de José Saraiva (reitor dos liceus de Leiria e Passos Manuel, em Lisboa) e de Maria da Ressurreiç­ão Baptista (uma doméstica tão crente que rezava o terço ajoelhada no oratório do quarto). Em miúdo, como confirmari­am os cinco irmãos – Mário, Florinda, Fernando, Maria José e José Hermano – tinha a alcunha de ‘O Manias’, por, entre outras peculiarid­ades, proclamar que queria ser (em vez de polícia, capitão, missionári­o ou arquiteto) um… santo. O jantar em casa da família Saraiva era educado e animado, pois o pai falava com tal facilidade sobre certas figuras que o filho Fernando “pensava serem suas amigas”: Gil Vicente, Fernão Lopes ou Alexandre Herculano. E o futuro comunista António José Saraiva, que não foi autorizado a vir a Portugal ao funeral da mãe, era, desde a juventude, o mais ligado ao irmão salazarist­a, que foi ministro da Educação: António José e José Hermano eram “uma alma em dois corpos”.

Atirou um tinteiro a Nemésio

Aos 13 anos, António José Saraiva sofreu uma otite que quase o ensurdeceu e de que nunca se curaria. Aos 16, matriculou-se na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu a licenciatu­ra em Filologia Românica com uma tese que era um ‘Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro’.

“Amante da verdade”, podia ter impulsos irrefletid­os. O mais célebre de todos foi quando, no verão de 1943, integrando um júri que avaliava teses de fim de curso, ao discordar do catedrátic­o Vitorino Nemésio (tinha sido arguente, no ano anterior, na sua tese de doutoramen­to, ‘Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval’) sobre a nota a dar a um dos alunos, envolveu-se numa disputa pública e acabou mesmo por atirar um tinteiro à cabeça do autor de ‘Mau Tempo no Canal’. As consequênc­ias seriam inevitávei­s: expulso da Universida­de, teve de se sujeitar a ir dar aulas para Viana do Castelo.

“Até ao casamento [com a ex-aluna Maria Isabel] permaneceu um católico empenhado, mas, entre os 20 e os

Fui espiritual­mente cristão e teoricamen­te marxista (...) Então, o partido fala com aquela parede, porque eu vou-me embora

Cozinhava-se a petróleo, num pequeno fogareiro

MARIA ISABEL SARAIVA, MULHER

26 anos, começou a ser atraído pelas ideias marxistas.” Ou, como explicaria numa entrevista a ‘O País’, em 1982: “Fui espiritual­mente cristão e teoricamen­te marxista.” Em 1944/45 terá aderido ao clandestin­o PCP. As primeiras dúvidas só lhe surgiram quando leu, no ‘Herald Tribune’, o discurso em que Khrushchev, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a 25 de fevereiro de 1956, denunciou os crimes do seu antecessor Estaline.

Acusado de ser membro do PCP, em 1949, foi preso com mais três dezenas de cidadãos, que seriam todos ilibados. Mesmo assim, foi demitido do lugar de professor, tinha os seus livros apreendido­s, os artigos nos jornais censurados e seria proibido de dar aulas num colégio privado. Em ‘Estas Minhas Memórias’ (obra nunca editada), Maria Isabel Saraiva lembra essa fase, em que lhes cortaram luz e água – “e cozinhava-se a petróleo, num pequeno fogareiro”. Até que, em 1950, o advogado Abranches Ferrão, que dirigia o ‘Jornal do Foro’, lhe propôs que escrevesse, em fascículos que eram um suplemento, uma ‘História da Cultura em Portugal’.

Amigo de Jorge de Sena e de Luísa Dacosta, a sua casa era frequentad­a pela elite intelectua­l. E, na mesma sala onde Alexandre O’Neill declamava o poema, ainda só manuscrito, ‘Sigamos o Cherne’, José Cardoso Pires deixava o original de ‘O Hóspede de Job’ (então com o título ‘O Hóspede da Mais Negra Providênci­a’), para obter uma opinião. Dos contemporâ­neos, admirava Herberto Helder, Nu

O Sr. Professor já pode regressar a Portugal

MARCELLO CAETANO, PM

no Bragança, Lídia Jorge, Eugénio de Andrade e, sobretudo, Agustina Bessa-Luís – que considerav­a “um génio da língua”. Em sentido contrário, além da “feroz aversão ao neo-realismo”, não apreciava, por exemplo, José Saramago, “consideran­do a sua escrita rude e destituída de elegância”.

Partido a falar com parede

Após 15 anos de matrimónio com Maria Isabel, com quem casara no Mosteiro dos Jerónimos, decidiu separar-se e foi viver para a Pensão Nova Sintra. Depois teve grandes paixões, ao ponto de, em carta a Óscar Lopes, relatar que tinha ido “à Dinamarca (23 horas de viagem) para ver uma mulher”. A maior de todas terá sido por Teresa Rita Lopes, com aquela jovem de 23 anos a “rejuvenesc­er” o intelectua­l de 42 anos: “Quando nos emparceirá­mos”, escreverá ela, “desengrava­tei-o e troquei-lhe as camisas por camisolas de gola alta – nunca mais usou fato nem gravata na vida”. Mais tarde, em conversa com o filho José, dizia-lhe: “Sabes, Zé, eu passei a vida a tentar entender as coisas, a ler e a escrever sobre as pessoas, mas há uma coisa que nunca consegui compreende­r: as mulheres.”

Espírito independen­te, quando foi a Moscovo, em 1962, para participar num ‘Congresso da Paz’, Álvaro Cunhal alterou o texto que ele tinha escrito com Maria Lamas, pois “os camaradas soviéticos não queriam que se falasse na Guerra Colonial”, que rebentara, em Angola, no ano anterior. Ao ler a versão definitiva que lhe entregou o secretário-geral do PCP, desistiu de “a recitar como um papagaio”. Também não gostou de passear sempre acompanhad­o por um “guia” e nunca compreende­ria que o Museu Hermitage não tivesse expostos os quadros de Marc Chagall, alegando que aquilo era “arte burguesa”. Já em Paris, para onde se mudara em 1959, quando um camarada lhe disse que, a partir daquele momento, não seria ele a falar, mas o “partido”, o intelectua­l retorquiu: “Então, o partido fala com aquela parede, porque eu vou-me embora.” Em 1968, depois de vibrar com o Maio parisiense (escreveu o livro ‘Maio e a Crise da Civilizaçã­o Burguesa’), chorou quando soube da invasão da Checoslová­quia.

Apaixonado pelo campismo

Além de gostar de estudar, de ensinar e de conversar, o seu grande prazer era acampar nas montanhas e fazer grandes caminhadas pelas serranias. A primeira vez, tinha 21 anos, foi para a Estrela com o irmão José Hermano (que tinha costurado a própria tenda) e outro amigo, passando 12 “inesquecív­eis” dias a sofrer o frio do gelo da Nave e a beber leite de cabra. Já no exílio, combinava encontros com os filhos em estações ferroviári­as de Espanha. Os rapazes, ao verem sair do comboio alguém soterrado num “monte de tralha [tenda, colchões, sacos-cama e apetrechos de cozinha], a avançar sozinho pela gare”, já sabiam que era o pai – e todos partilhava­m as tarefas. Nos seus passeios, encantava-se com “os grilinhos [que] cantam na beira do caminho” ou com “o zumbido mecânico das vespas”.

Um dos sinais de abertura que Marcello Caetano pretendeu dar, quando substituiu Salazar, foi avisar a família, em 1969, que “o Sr. Professor” já podia regressar a Portugal. Após 10 anos de exílio, e com “uma aura de intelectua­l prestigiad­o ”, concedeu duas entrevista­s: a Fernando D acosta, que a publicouna revista‘ Vida Mundial ’, e ao filho José António Saraiva, que colaborava, então, com o ‘Comércio do Funchal’.

A 9 de abril de 1987, sofreu um AVC, a que chamaria, na meia dúzia de anos

Desengrava­tei-o e troquei-lhe as camisas por camisolas de gola alta, nunca mais usou fato nem gravata na vida

TERESA RITA LOPES, ESCRITORA E COMPANHEIR­A

em que ainda viveu, “a trombada”. A 17 de março de 1993, na sede da Associação Portuguesa de Escritores, pedindo desculpa por não tirar a boina, mas a cabeça “resfriava muito”, a meio do discurso de agradecime­nto pela atribuição do Prémio Ensaio do Pen Clube Português, pela sua obra ‘A Tertúlia Ocidental’, morreu diante da plateia que o escutava. Provavelme­nte, o título que melhor o definiu foi o do artigo publicado, a 23 de março, no ‘Jornal de Letras’, por Teresa Rita Lopes: “A nobreza de não saber viver.”

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 ??  ?? 2 2 Entrevista­do pelo filho, José António Saraiva (futuro diretor dos semanários ‘Expresso’ e ‘Sol’) para o ‘Comércio do Funchal’, em 1969
2 2 Entrevista­do pelo filho, José António Saraiva (futuro diretor dos semanários ‘Expresso’ e ‘Sol’) para o ‘Comércio do Funchal’, em 1969
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1 1 No exílio, em Paris, onde testemunho­u os acontecime­ntos de Maio de 1968, que deram origem ao seu livro ‘Maio e a Crise da Civilizaçã­o Burguesa’ e contribuír­am para a rutura com o PCP
 ??  ?? 3 Foto de família em 1940 (da esquerda para a direita): o irmão Mário, António José, a mãe (Maria da Ressurreiç­ão Baptista), o pai (José Saraiva), a irmã Florinda, o irmão Fernando, a irmã Maria José e o irmão José Hermano
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3 Foto de família em 1940 (da esquerda para a direita): o irmão Mário, António José, a mãe (Maria da Ressurreiç­ão Baptista), o pai (José Saraiva), a irmã Florinda, o irmão Fernando, a irmã Maria José e o irmão José Hermano 3
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Com o irmão José Hermano (à direita na foto): “uma alma em dois corpos”, apesar de António José ser comunista e ter estado exilado enquanto o salazarist­a Hermano era ministro da Educação

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