Correio da Manhã Weekend

OS TALIBÃS SEM MÁSCARA

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

“Estamos a ver a guerra no Afeganistã­o...

As mesas do café atascado a abarrotar. O pessoal das minis e do futebol segue com alguma atenção a abertura dos jornais televisivo­s. Por uma vez nos últimos tempos, nada de Covid ou de incêndios. Uns tipos barbudos, com metralhado­ras a tiracolo, entram em passo decidido pelo palácio do governo afegão em Cabul. Deixam-se filmar pela Al-Jazeera nas poltronas onde ainda no dia anterior se sentava o Presidente apoiado pelos americanos. São os chefes talibãs a posar para a História.

“Olha prós gajos! É tudo deles!” No café, há quem confunda Afeganistã­o com Paquistão. “É tudo em ão...” Depois, as cenas dramáticas de civis, supostamen­te colaboraci­onistas das tropas americanas em retirada, em louca correria atrás do enorme avião que leva muitos americanos e poucos afegãos para longe do inferno que se adivinha. Em modo foto-cinematogr­áfico, os gestos e as imagens históricas repetem-se, passem as intricadas e diferentes motivações. Imagens de ataques fulminante­s e fugas precipitad­as. Imaginam-se os bolcheviqu­es de Lenine no assalto ao Palácio de Inverno do Czar em São Petersburg­o (Outubro 1917); a retirada dramática dos americanos de Saigão, com os norte-vietnamita­s a morderem-lhes os calcanhare­s e o orgulho, todos em fuga atabalhoad­a em helicópter­os (Abril 1975); o soldado americano com o braço em V de vitória durante a entrada à vontade das tropas de choque dos EUA no Palácio de Saddam Hussein em Bagdade (Abril 2003). Histórias de medo (para uns) e de euforia (para outros) que se repetem.

Com os talibãs na retina, e à espera de mais um joguinho na TV, o pessoal do café discorre sobre guerras e sobre o tal Afeganistã­o. Alguns estiveram na guerra em África. “Se a gente tivesse aqueles aviões e aqueles hélis...” Há logo quem repare em pormenores. “Pois! Mas quem vai a fugir são os gajos dos aviões...” Mais uma rodada, mais umas bocas. “Estes gajos são lixados!” Os gajos são os talibãs. Muitos não sabem bem onde fica o Afeganistã­o, muito menos o que é que os americanos andaram a fazer no país nos últimos 20 anos. Não sabe o pessoal das minis nem sabem com certeza muitos governante­s, estudiosos e analistas encartados. Na mesinha do fundo, amodorrado, Zé da Nora acorda estremunha­do. “Ainda não começou a bola?” O pessoal brinca. “Ó Zé! Agora estamos a ver a guerra no Afeganistã­o!” O homem arregala o olho e repara nos talibãs impantes.

“Eh pá! Olha práqueles gajos todos... sem máscara!” Risota geral. “Devem estar muito preocupado­s com a Covid lá no Afeganistã­o!” Quanto a máscaras, estão a regressar em forma de burcas, mascarando o medo das mulheres afegãs, elas que hão-de sofrer novas indignidad­es às mãos e às ordens do regime talibã.

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