OS TALIBÃS SEM MÁSCARA
“Estamos a ver a guerra no Afeganistão...
As mesas do café atascado a abarrotar. O pessoal das minis e do futebol segue com alguma atenção a abertura dos jornais televisivos. Por uma vez nos últimos tempos, nada de Covid ou de incêndios. Uns tipos barbudos, com metralhadoras a tiracolo, entram em passo decidido pelo palácio do governo afegão em Cabul. Deixam-se filmar pela Al-Jazeera nas poltronas onde ainda no dia anterior se sentava o Presidente apoiado pelos americanos. São os chefes talibãs a posar para a História.
“Olha prós gajos! É tudo deles!” No café, há quem confunda Afeganistão com Paquistão. “É tudo em ão...” Depois, as cenas dramáticas de civis, supostamente colaboracionistas das tropas americanas em retirada, em louca correria atrás do enorme avião que leva muitos americanos e poucos afegãos para longe do inferno que se adivinha. Em modo foto-cinematográfico, os gestos e as imagens históricas repetem-se, passem as intricadas e diferentes motivações. Imagens de ataques fulminantes e fugas precipitadas. Imaginam-se os bolcheviques de Lenine no assalto ao Palácio de Inverno do Czar em São Petersburgo (Outubro 1917); a retirada dramática dos americanos de Saigão, com os norte-vietnamitas a morderem-lhes os calcanhares e o orgulho, todos em fuga atabalhoada em helicópteros (Abril 1975); o soldado americano com o braço em V de vitória durante a entrada à vontade das tropas de choque dos EUA no Palácio de Saddam Hussein em Bagdade (Abril 2003). Histórias de medo (para uns) e de euforia (para outros) que se repetem.
Com os talibãs na retina, e à espera de mais um joguinho na TV, o pessoal do café discorre sobre guerras e sobre o tal Afeganistão. Alguns estiveram na guerra em África. “Se a gente tivesse aqueles aviões e aqueles hélis...” Há logo quem repare em pormenores. “Pois! Mas quem vai a fugir são os gajos dos aviões...” Mais uma rodada, mais umas bocas. “Estes gajos são lixados!” Os gajos são os talibãs. Muitos não sabem bem onde fica o Afeganistão, muito menos o que é que os americanos andaram a fazer no país nos últimos 20 anos. Não sabe o pessoal das minis nem sabem com certeza muitos governantes, estudiosos e analistas encartados. Na mesinha do fundo, amodorrado, Zé da Nora acorda estremunhado. “Ainda não começou a bola?” O pessoal brinca. “Ó Zé! Agora estamos a ver a guerra no Afeganistão!” O homem arregala o olho e repara nos talibãs impantes.
“Eh pá! Olha práqueles gajos todos... sem máscara!” Risota geral. “Devem estar muito preocupados com a Covid lá no Afeganistão!” Quanto a máscaras, estão a regressar em forma de burcas, mascarando o medo das mulheres afegãs, elas que hão-de sofrer novas indignidades às mãos e às ordens do regime talibã.