A CATARSE DA GUERRA ENTRE PORTUGAL E A GUINÉ
Congresso de Antigos Combatentes vai juntar, em Bissau, políticos, militares, académicos e artistas
Quase seis décadas após o início da guerra colonial na Guiné-Bissau e cerca de meio século depois da independência daquele país africano,
vai realizar-se, nos dias 26 e 27 de novembro, o Primeiro Congresso dos Antigos Combatentes Portugueses e Guineenses. No encontro, agendado para a Assembleia Nacional, em Bissau, não se pretende apenas refletir sobre o confronto militar, mas abordar as mais diversas facetas, desde a eventualidade de o conflito poder ter sido evitado até aos vínculos que ainda ligam os dois países de Língua Oficial Portuguesa. Para assegurar o respeito mútuo, haverá duas comissões de honra – com paridade no estatuto de políticos, militares, investigadores e personalidades da cultura de cada país.
A ideia partiu do cirurgião pediátrico (aposentado) José Manuel Pavão, que é o presidente da Associação de Amizade Portugal-Guiné-Bissau e, desde 2001, cônsul honorário da República da Guiné-Bissau no Porto. Além desses cargos, o ex-deputado do PSD (eleito pelo círculo de Bragança, exerceu um mandato na Legislatura 2002-2005) ainda fundou o Clube de Negócios Luso-Hispano-Guineense, organizou e promoveu várias missões de apoio humanitário àquele país e escreveu o livro ‘Guiné-Bissau – séc. XXI’.
As perguntas suscitadas pelo criador do conceito, além de se “refletir sobre a guerra”, parecem encadear-se: “Que outros caminhos podiam ter sido seguidos para a sua resolução? Quais são as memórias comuns? O que pensam, hoje, os então inimigos? A reconciliação está feita? Quais são os laços entre os dois países?”
Num território pouco maior do que o Alentejo, mas onde convivem imensas etnias – dos balantas aos manjacos, dos fulas aos mandingas, dos beafadas aos bijagós, dos papéis aos nalus, dos sossos aos felupes –, entre 1963 e 1974, digladiaram-se os dois contingentes. Mas, além das táticas e dos armamentos, há muitos temas em aberto: das reuniões secretas, em Londres, entre representantes das autoridades portuguesas e do movimento de libertação africano, que não resultaram num esperado tratado de paz e numa autonomia conducente à independência, até à politização dos oficiais portugueses (de Ramalho Eanes a Otelo Saraiva de Carvalho), de que resultaria o 25 de Abril de 1974. Nada deverá limitar o âmbito do congresso, incluindo as formas de cooperação no pós-independência, dos empresários portugueses que voltaram à antiga colónia até aos filhos das elites a estudar na anterior potência dominante.
Mário Cláudio e Flora Gomes
Sociólogos e psicólogos, historiadores e dignitários religiosos, poetas e artistas, oficiais que estiveram no terreno e jovens que nasceram depois da guerra, as mães das vítimas que sofreram com o seu luto e os sobreviventes atingidos por stress pós-traumático, todos serão chamados a participar, a abordar os mais diversos aspetos daquele sangrento confronto. “Se este congresso não for um relato nu e cru, uma catarse, então é porque não conseguiu atingir os seus objetivos”, sintetiza José Manuel Pavão, o pioneiro do projeto.
Entre os nomes já confirmados encontra-se o romancista português Mário Cláudio – Prémio Pessoa
O que pensam hoje os então inimigos? A reconciliação está feita?
e autor de um variado catálogo de títulos, em que se insere, por exemplo, a ‘Trilogia da Mão’, constituída pelos livros ‘Amadeo’, ‘Guilhermina’ e ‘Rosa’ –, que cumpriu serviço militar naquela antiga colónia. Do lado contrário, estará um vulto da cultura guineense conhecido internacionalmente, o cineasta Flora Gomes, que, antes dos documentários e das obras de ficção, apresentadas nos festivais de Veneza e de Cannes, como ‘Mortu Nega’, ‘Os Olhos Azuis de Yonta’, ‘Po di Sangui’ ou ‘Nha Fala’, filmou a cerimónia formal da independência, a 24 de setembro de 1974 – a primeira declaração, embora unilateral, foi proclamada, um ano antes, em Madina do Boé.
Outras figuras começam a integrar o programa, como Mário Beja Santos (mais conhecido pela luta na defesa do consumidor), que tem uma vasta bibliografia sobre a Guiné, de ‘Adeus, Até ao Meu Regresso’ a ‘Nunca Digas Adeus às Armas’ (em parceria com António dos Santos Alberto Andrade), passando pelos dois volumes ‘História(s) da Guiné Portuguesa’. E, também, o historiador guineense Julião Soares Sousa, com percurso académico na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sendo o autor da biografia ‘Amílcar Cabral (1924-1973) – Vida e Morte de um Revolucionário Africano’.
Na lista que está a ser constituída podem ainda figurar médicos, como o português António Ramalho de Almeida, especialista de doenças respiratórias (jubilado) e que editou ‘Guiné Mal Amada – O Inferno da Guerra’, ou o pediatra
“
guineense João Maria Gudiaby cuja intervenção se vai designar ‘Guerrilheiro, Antes; Médico, Depois’. Além das instituições oficiais, também têm vindo a ser estabelecidos contactos com, entre outras entidades, a portuguesa Liga dos Combatentes e associações de antigos combatentes da Guiné-Bissau organizadas em tabancas (povoações, no crioulo local).
Spínola e Amílcar Cabral
Afinal, não se poderia entender a História se tudo se limitasse apenas aos combates entre as tropas de António de Spínola e os guerrilheiros de Amílcar Cabral. O primeiro, um carismático cabo-de-guerra, governador militar daquela colónia (1968-1973), a par das manobras bélicas, ainda ensaiou uma “ação psicológica” para tentar captar os naturais para a causa portuguesa. Esta experiência levou-o a redigir o livro decisivo para a queda da ditadura, ‘Portugal e o Futuro’, ao sustentar que a única saída para o conflito era uma solução política e não militar. Depois, seria o primeiro Presidente da República do regime democrático português.
O líder indiscutível do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) foi um revolucionário que surpreendeu Che Guevara e um pensador tão singular que era admirado por Nelson Mandela – mas o agrónomo e hábil diplomata seria assassinado em 1973.
Convicto de que se conseguirá garantir uma “elevada qualidade dos participantes” , José Manuel Pavão está a contar que venham a ser publicadas as Atas do Congresso – esperando que a edição fique a cargo da Fundação Calouste Gulbenkian.
Se este congresso não for um relato nu e cru, uma catarse, então é porque não conseguiu atingir os seus objetivos
JOSÉ MANUEL PAVÃO, MÉDICO E CÔNSUL HONORÁRIO DA GUINÉ NO PORTO