VENCESLAU FERNANDES
“Comecei do nada, descalço e sem calças”
SUBIR A PULSO → Recorda as dificuldades da infância e do arranque da carreira, mas salienta que chegou ao sucesso por mérito próprio
TREINO → Ainda pedala 350 km por semana
Correio Sport - Como analisa o seu percurso de vida? Venceslau Fernandes - Sinto-me realizado em tudo o que fiz na vida, embora não completamente na parte desportiva porque poderia ter ganhado mais Voltas a Portugal. No entanto, não ganhei por algumas situações, que faziam parte do ciclismo daquele tempo: não havia meios de controlo dos tempos que há hoje, além de problemas com os cronometristas. Com a atual tecnologia teria ganhado três ou quatro Voltas a Portugal. Ganhei uma, foi muito bom, foi excelente para mim. Além disso, ganhei muitas corridas e muitos ‘grandes prémios’.
- Não foi um percurso fácil? - Foi preciso um grande espírito de sacrifício. Comecei do nada, sem ter nada, descalço e sem calças. Com o passar do tempo, com o meu trabalho, desde praticamente os meus cinco anos de idade, organizei-me e consegui triunfar na vida, com esforço, dedicação e pelo meu próprio pulso. Sofri muito, passei por dificuldades, e, quando cheguei ao topo, lutei muito para me manter nesse patamar.
- Como apareceu o ‘bichinho’ do ciclismo?
- Em criança, ia com o meu pai ver os corredores passar nos Carvalhos, em Gaia. Gostava muito de futebol mas apaixonei-me pelo ciclismo. Assim que tive possibilidade, comprei uma bicicleta de corrida a um tio por mil e duzentos escudos. Foi assim que comecei a andar de bicicleta. Ao início só treinava mas depois passei a correr nos ‘populares’, que era o equivalente à formação.
- Mil e duzentos escudos naquela altura era muito dinheiro. Como conseguiu pagar?
- Com nove anos, usei o dinheiro que tinha angariado com o meu trabalho. Ajudava o padre na missa matinal, todos os dias, e ganhava vinte e cinco tostões por missa. Depois ia para casa, preparava o meu pequeno-almoço – os meus pais já tinham saído para trabalhar – e ia para a escola. Depois das aulas, ia trabalhar para um desaterro [escavação de onde era removida terra] para ganhar mais vinte e cinco tostões. Naquela altura não havia tratores ou grandes camiões, os desaterros eram feitos de giga na cabeça.
- Como começou a competir? - Comecei a treinar sozinho. Um dia, na estrada, encontrei o Salvador Prazeres, que era de Serzedo, e que corria nas categorias de juniores do FC Porto. Convidou-me para ir a um treino no Estádio das Antas. Lá fui, emprestaram-me uns calções e uma camisola e fiz o treino com eles. Ainda corri pelo FC Porto numa prova na Rebordosa. Depois fui a uma corrida à Feira mas disseram que não tinham um equipamento para me emprestar e fiz essa corrida pelo Académico do Porto.
- Até que chegou aos seniores… - Fiz a minha primeira Volta a Portugal pelo Académico do Porto mas fiquei em último por causa da minha inexperiência e por problemas de saúde. No ano seguinte, corri pela CEDEMI, de Viana do Castelo, e comecei a fazer boas corridas, a entrar em bons lugares e fiquei em 32º lugar na Volta a Portugal. Podia ter feito alguns brilharetes mas nessa prova tive de trabalhar para o chefe de fila, o Carlos Carvalho.
- Quando começou a sua fase de sucesso?
- Fui para o Benfica, ganhei muitas corridas e poderia ter ganhado muitas mais. Pronto, o que se podia fazer, foi feito. Tive muito sucesso no Benfica mas o 25 de Abril de 1974 veio parar tudo. As equipas profissionais acabaram, os ciclistas passaram a amadores. Depois estive no Sangalhos, vencemos uma Volta a Portugal por equipas e vim para o FC Porto, onde também tive muito sucesso.
- O que guarda do triunfo na Volta a Portugal em 1984? - Esse triunfo foi o ponto mais alto da minha carreira. Com 39 anos, formei a equipa Ajacto/Morphy Richards e fui com meia dúzia de corredores para a estrada, que o orçamento não dava para mais. Lá me consegui defender das equipas que levavam oito e dez ciclistas. Estávamos com mais poder do que todos os outros e consegui vencer a Volta a Portugal. No ano seguinte, com 40 anos, perdi a ‘Volta’ no último dia no contrarrelógio, numa prova que fiz terceiro mas em que teria muito para dizer de coisas que não deveriam ter acontecido.
- Com 76 anos, ainda treina com frequência? - Ainda este ano fiz a subida à Senhora da Graça, desde a minha casa, em Gaia. Juntei-me à minha família para assistir à etapa da ‘Volta’ e vim embora. Não é novidade para mim, faço cerca de 350 quilómetros por semana, treino diariamente na estrada ou na bicicleta estática em casa. De tarde, venho trabalhar para a minha oficina de bicicletas, em Perosinho, até à noite. Além disso, trabalho na agricultura e tenho os animais para tratar.