Correio da Manhã Weekend

As palavras voam, a escrita fica

- TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho

Verba volant, script manent, as palavras voam, a escrita fica, é sabedoria latina para levar a sério, só que são muitos e neles me incluo, os que por descaso ou preguiça encolhem os ombros à justeza do provérbio.

Comecei a escrever cartas aí por volta dos doze anos, vício que teve um fim abrupto com a chegada da internet, o que não lamento nem me deixou saudades. Primeiro, porque sendo um vício, tinha exigências que além de transtorna­rem o meu dia-a-dia, muitas vezes contribuía­m para um sentimento de culpa, pois nem a pontualida­de a responder era virtude que me sobrasse, como também por preguiça ou de tanto adiar, em vez de reagir deixava crescer em mim uma injustific­ada irritação, como se aquele a quem devia resposta fosse culpado do meu desleixo.

Depois havia ainda os que, por lhes ter respondido, interpreta­vam esse gesto de cortesia como razão bastante para dar começo ao que parecia uma troca de amabilidad­es, mas em breve desandava numa, nem sempre velada, exigência de confissões e intimismo que em casos extremos levava a atitudes de má-criação.

Actualment­e são muito raras as cartas que escrevo, e poucas, quase sempre oficiais as que recebo, mas tempos atrás o antigo fenómeno da correspond­ência particular veio inesperada­mente ao meu encontro, não sob a forma de um envelope com morada e remetente, mas o e-mail de um desconheci­do, anunciando que no espólio de sua mãe, falecida em Abril, encontrara duas cartas minhas, datadas de Outubro de 1966, teria muito gosto de mas entregar em mãos, escolhesse eu o dia e o local.

Dá-se agora o caso de que o nome da falecida nada me dizia, como também não era excessiva a curiosidad­e que me despertava o conteúdo de uma correspond­ência de há mais de meio século, de modo que juntando o desinteres­se ao desleixo esqueci a proposta. Em má hora o fiz, porque o cavalheiro inesperada­mente voltou ao assunto, mas dando de barato as gentilezas e salamalequ­es anteriores entrou a ameaçar, não viesse eu depois queixar-me do escândalo ou acusá-lo de o não ter avisado.

Como não sou de medos e possuo alguma experiênci­a em lidar com tarados, dei rédea larga, aconselhan­do o cujo que fosse por diante, da minha parte mandaria eu rezar uma missa por alma da falecida.

O inesperado desfecho dá prova de que embora me encontre ainda neste mundo já deixei de funcionar nele. É que não havia cartas, cavalheiro, ameaças, nem mãe falecida, tinha sido gracinha duma madame que assim se diverte e arranja conteúdo para o Face.n

COMECEI A ESCREVER CARTAS POR VOLTA DOS DOZE ANOS, VÍCIO QUE TEVE UM FIM ABRUPTO

QUANDO CHEGOU A INTERNET

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