Correio da Manhã Weekend

“VI-OS CHEGAR A CHORAR E A GRITAR A MORTE DO FURRIEL”

Do meu posto de radioteleg­rafista assisti muitas vezes aos meus camaradas a regressare­m do mato desesperad­os

- MARTA MARTINS SILVA RECOLHA DO DEPOIMENTO

Embarquei para o Ultramar no dia 8 de abril de 1967 no navio Uíge. A viagem foi o primeiro desafio para nós, que não estávamos habituados a estas andanças: nos primeiros dias fui deitado, que nem me conseguia levantar. E eu tive a sorte de ir num camarote, os meus camaradas que foram no porão nem se fala no que eles passaram. Chegámos a Guiné seis dias depois. Já se falava que era um cenário terrível, mas estávamos longe de imaginar aquilo que íamos encontrar. Até porque nós fomos para um dos piores sítios que havia naquela altura, para Tite... Assim que desembarcá­mos em Bissau meteram-nos numa lancha, nem tivemos tempo para nos adaptarmos. Éramos uns ‘periquitos’, como eles chamavam aos mais novos, íamos com muito medo mesmo. Nós éramos uns miúdos de 20 anos no meio de uma guerra, quando embarcámos nenhum de nós sabia se voltava.

Ataques constantes

O que me marcou mais foi sempre que algum dos meus companheir­os sofria ataques ou emboscadas e perdia a vida na guerra. Éramos como uma família, não de sangue mas de camaradage­m, e era suposto regressarm­os todos juntos. Mas isso não aconteceu. Houve um dia em que um furriel a atravessar um rio foi apanhado por um crocodilo, os colegas só viram os braços no ar e o crocodilo a puxá-lo para o fundo do rio, já não havia nada a fazer. Deixou passar os soldados todos e ele, que foi o último, não teve hipótese. Eu não assisti a isso porque estava sempre no quartel, cercado por arame farpado, mas via-os chegar das operações no mato... Desse dia não me consigo esquecer de ver os camaradas a chegarem ao quartel todos a chorar - a minha caserna era mesmo em frente à porta de armas e era impossível não ver e ouvir o desespero deles - a gritarem a tragédia que tinha acontecido ao furriel. Vinham um a um, uns nus, outros descalços, um cortejo horrível de assistir.

Éramos atacados quase dia sim, dia não. A nossa sorte é que eles mandavam as morteirada­s e não tiravam a cavilha do morteiro, por isso elas caíam ao pé da gente e não rebentavam. Houve uma que caiu mesmo em frente ao nosso abrigo e não rebentou... se calha a rebentar, tínhamos morrido todos. No maior ataque que sofremos, eu estava de serviço e não abandonei o meu posto. Nós éramos a CCS (Companhia de Comando e Serviços) e não podia abandonar o posto para transmitir o que se estava a passar aos colegas dos outros quartéis nos arredores que pertenciam à nossa companhia. Meti-me debaixo da bancada onde trabalhava e mantive-me ali. Nessa altura nem me importava de morrer, só queria que aquilo parasse. Eu vi lá morrer o meu alferes e vários colegas, mas consegui manter-me firme no meu posto debaixo da tal bancada. Claro que aquilo podia ter ido tudo ao ar... mas ver morrer os nossos era horrível. Nós todos tínhamos um cinto e cada mês que passava fazíamos um quadradinh­o no cinto. Cada quadradinh­o era menos um mês na guerra, menos um mês naquele inferno. Tive pena de não ficar com o cinto.

Voltei no dia 9 de março de 1969, de novo no Uíge, mas desta vez no porão. Só que isso já não importava, o que eu queria era regressar a casa.

Cada mês que passava marcávamos um quadrado no cinto

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 ??  ?? 1 Convívio entre os alentejano­s da companhia 2 Com um radiotrans­missor de campanha 3 Efeito de um morteiro no ataque de 19-09-1967, em Tite 4 A operar um rádio RGC9 5 A equipa de transmissõ­es no quartel de Tite
1 Convívio entre os alentejano­s da companhia 2 Com um radiotrans­missor de campanha 3 Efeito de um morteiro no ataque de 19-09-1967, em Tite 4 A operar um rádio RGC9 5 A equipa de transmissõ­es no quartel de Tite

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