Correio da Manhã Weekend

UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA

A notícia de que Américo Reis tinha sido condenado a uma pena de prisão perpétua por um tribunal suíço, pelo bárbaro homicídio da mulher e do filho, não deixou a família nem os amigos de Ana Bela Reis e de Paulo Rafael aliviados

- PAULO JORGE DUARTE TEXTO

Medo. Medo de que vinte anos de terror e calvário de Ana Bela se repitam, agora com os familiares. Nem a certeza de que o “monstro da Feira” está condenado a prisão perpétua e privado de liberdade nas próximas décadas serena estas pessoas. Na pequena vila da Branca, em Albergaria-a-Velha, Américo Reis manteve duas décadas de conflitos e de ameaças com os familiares de Ana Bela. O receio da vingança do emigrante agora condenado, ou mesmo da sua família - os irmãos com quem também viveu episódios de violência e confrontos -, não permite que os familiares façam o luto pela irmã e filha e pelo neto e sobrinho. Uma lista de pessoas marcadas para morrer, é assim que é dada forma ao medo, uma confissão que é feita em jeito de desculpa por não quererem assumir publicamen­te os seus sentimento­s. Não existe alívio. Existe terror e medo de que Américo Reis, depois de assassinar a mulher de 42 anos e o filho mais velho, de 18 anos, em Payerne, na Suíça, com cerca de 30 tiros disparados por uma Glock 34, volte a Albergaria-a-Velha. O receio de vingança não deixa os familiares contar a história de Ana Bela, os anos em que a mulher fingiu que tudo estava bem entre o casal até a tragédia a desmentir.

“A Ana Bela conheceu o Américo na discoteca Big Cansil, em S. João de Vêr, na Feira. Ele veio numa motorizada velha, contou umas histórias em que ninguém acreditou: afinal, não tinha apartament­os, tinha era uma filha de um outro relacionam­ento. Quando se casaram, foram de lua de mel para o Algarve mas ele trancou-a no hotel logo primeiro dia. E quando nasceu o primeiro filho… o Américo desaparece­u uma semana, deixou a mulher com o bebé nos braços e só voltou quando se lhe acabou o dinheiro. A Ana Bela aceitou-o e não devia, nenhuma mulher deveria

encobrir estes episódios de violência.” Esta parte da história é contada em segredo por alguém próximo da família. O receio de retaliação leva a que peçam o anonimato.

Emigrantes na Suíça desde 2006, Ana Bela e Américo partiram com os dois filhos, de 2 e 4 anos, nos braços, em busca de uma vida melhor, mas também menos conflituos­a. A construção civil e o ramo das limpezas deram trabalho ao casal. Os primeiros anos decorreram de forma normal até a personalid­ade de Américo passar a condiciona­r, de forma agressiva, a vida da família. Os episódios de violência doméstica estão registados na polícia suíça. Meses antes do banho de sangue, Américo partiu o nariz a Ana Bela. Os dois filhos testemunha­ram nesse processo e não pouparam o pai. As agressões físicas e verbais eram frequentes e tinham sempre os ciúmes como ignição. As ameaças de morte também fizeram parte do calvário de Ana Bela. Depois de a mulher sair de casa, com os dois rapazes, em setembro de 2017, para tentar escapar ao inferno em que vivia, as ameaças chegaram por telemóvel e por mensagem. Até ao dia que Américo procurou Ana Bela na casa onde se refugiou com os filhos e usou a Glock 34, uma pistola semiautomá­tica que sempre o acompanhav­a, para balear a mulher e o filho com cerca de trinta tiros. Em Portugal, o uso desta arma é restrito às forças de autoridade e militares.

O massacre

25 de abril de 2018: o dia da tragédia em Payerne. Meses depois da separação, Américo Reis ainda não tinha aceitado o fim da relação com Ana Bela. O Ministério Público afirma que, nos dias que antecedera­m a tragédia, enviou à mulher cerca de setenta SMS em que a insultava.

Depois do trabalho, Américo Reis foi buscar a pistola e dois carregador­es com 31 cartuchos e procurou a mulher no apartament­o dela, junto à estação de Payerne, para onde se tinha mudado meses antes. Discutiram, mais uma vez. Ana Bela acaba por lhe abrir a porta mas o filho mais velho agarra um martelo para impedir que o pai entre. A Glock 34 encrava durante a luta e Américo dispara a primeira bala à queima-roupa no peito do filho mais velho, e depois mais de dez vezes na mulher.

Paulo Rafael, gravemente ferido, ainda tenta escapar pela escada do prédio. O pai encontra-o e puxa o gatilho novamente. O homicida matou a mulher. Paulo Rafael, por tentar defender a mãe, tem a mesma sorte. Américo Reis disparou todas as munições que levou consigo. Em tribunal, a acusação não tem dúvidas de que o português natural de Travanca (Santa Maria da Feira) quis literalmen­te acabar com a mãe dos seus filhos, pois apontou à cabeça, pelo menos mais seis vezes. Durante a leitura do acórdão, o tribunal está convicto de que “o arguido planeou premeditad­amente o crime e esvaziou, sem quaisquer escrúpulos, dois carregador­es sobre a mulher e o filho”.

Américo não disparou só para tirar a vida. O ‘monstro da Feira’ recarregou a arma para disparar balas inúteis nos corpos inertes de Ana Bela e Paulo Rafael. Ao tribunal, o arguido disse não saber como cometeu tal barbaridad­e, justificou-se com a medicação com que tratava uma depressão. A arma, essa, explicou que a carregava há já alguns meses no carro. “Era para ir ao centro de tiro quando tivesse oportunida­de, levei-a para me sentir mais seguro”, justificou em tribunal. No entanto, Américo não explicou porque procurou Ana Bela, já dentro do prédio, levando consigo uma arma completame­nte municiada acompanhad­a de um carregador suplente.

Conheci o Américo, saiu ao pai, só que ainda pior

JOAQUIM SOUSA,

ANTIGO PATRÃO DO PAI

Segundo a polícia suíça, o português disparou 30 vezes. Depois do massacre, que terá durado entre 10 e 15 minutos, Américo dirige-se para Friburgo e depois para Genebra, onde se vai encontrar com dois familiares a quem confessa os homicídios. Os negociador­es da polícia entram em ação e convencem o fugitivo a render-se, o que veio a acontecer durante a noite na ‘gendarmeri­e’ de Payerne. Desde esse dia, em 2018, Américo Reis ficou detido na prisão Bois-Mermet, em Lausanne.

Maria Mendes era amiga de infância de Ana Bela e conhecia, por isso, Américo. Construíra­m uma vivenda de luxo na Branca, em Albergaria-a-Velha, ao lado da casa da mulher. A amizade perdurou nos doze anos que o casal esteve emigrado. A notícia da tragédia chegou-lhe um dia depois dos factos: “Estava a trabalhar e foi a minha filha que me ligou a contar o que tinha acontecido. Não queria acreditar, fiquei incrédula, fora de mim e voltei para casa, já não consegui terminar o dia de trabalho”, lembrou a mulher. “Era a minha amiga e o filho também era um bocadinho meu, era muito querido para mim, um doce de menino. Tomei muitas vezes conta dele aqui em casa, passava aqui muito tempo.” Maria Mendes era amiga de infância. O filho dela era amigo de Paulo Rafael. Os rapazes tinham praticamen­te a mesma idade. “Eram muito amigos, passavam muito tempo juntos, foram momentos muito difíceis também para o meu filho. Quando soubemos da condenação estivemos a rever fotografia­s antigas e o meu filho confessou que tinha muitas saudades daquele ‘puto’”, contou Maria Mendes.

Na terra do homicida

Travanca, Santa Maria da Feira. Américo Reis cresceu numa casa

Os tiros foram disparados com intenção de matar

ACÓRDÃO, TRIBUNAL DE LA BROYE

humilde na rua dos Caneiros. O pai, carpinteir­o de profissão, tinha um comportame­nto agressivo com a mulher e os seis filhos. Um ambiente familiar degradante que foi invocado como atenuante pelo advogado de defesa Patrick Michod durante o julgamento. O Tribunal Criminal de La Broye e Nord Vaudois desvaloriz­ou.

Em Travanca há quem se lembre desses tempos: “Dei trabalho ao pai por caridade porque a mulher e os filhos estavam a passar mal, passavam fome. Conheci o Américo, era muito rebelde e mau para o pai e para a mãe, batia-lhes, fez umas asneiras e foi preso. Ainda assim, casou com esta mulher, teve filhos e foi trabalhar para a Suíça. O problema é que saiu ao pai dele, só que ainda pior”, contou Joaquim Sousa, antigo patrão do patriarca da família Reis.

Américo era conhecido em Travanca como uma “pessoa má” de quem todos tinham medo por causa da fama de andar sempre armado. “Saber que matou a mulher não foi nenhuma surpresa para mim, surpresa foi saber que o Américo tinha casado, construído casa e emigrado. Ninguém se aproximava dele, tinham medo; ele tinha dois ou três amigos que eram iguais a ele. Era conhecido como o Américo da Volta, puxava da arma por qualquer coisa e a verdade é que o povo tinha medo e se retirava sempre de ao pé dele. A GNR chegou a ir ter com o Américo muitas vezes, não sei se alguma vez lhe tiraram a arma”, assegurou o homem.

Américo Reis tem o comportame­nto violento do pai, mas também os seus irmãos são recordados por desacatos: “Andou aos tiros com um irmão, era também muito mau para ele. Tinham os dois mau feitio, mas o Américo era mais bravo e desordeiro”, recordou Joaquim Sousa.

Na rua dos Caneiros nem todos guardam más recordaçõe­s dos tempos em que Américo e os irmãos brincavam na rua. Junto à casa da família, que agora não existe, o futebol era a brincadeir­a preferida entre os miúdos e os mais velhos. Quando se soube que Américo tinha cometido o duplo homicídio, a surpresa foi total. “Até fiquei doente, porque matar assim a mulher e um filho choca. Um homem, às vezes, perde a cabeça e as coisas acontecem. Agora, estou admirado é pela condenação a prisão perpétua, é uma sentença pesada”, lamentou Serafim Santos, antigo vizinho da família. “Juntávamo-nos todos aqui na rua para jogar à bola, os nossos filhos, os pais, sempre nos demos todos bem. Pouco antes de tudo ter acontecido ainda estive com o Américo numa pastelaria em Santa Maria da Feira. Conversámo­s e ele disse que estava tudo bem: tenho pena dele porque é uma pena pesada. O pai dele, o Tono da Volta, como era conhecido, era meu cliente da oficina, arranjei-lhe muitas vezes a motorizada. Já a mãe era uma mulher muito fechada. Dos filhos não tenho nada a dizer de mal, ainda hoje, quando regressam da Suíça, visitam-me, falam comigo e até me

Saber que matou a mulher não foi surpresa, surpresa foi saber que tinha casado, construído casa e emigrado

JOAQUIM SOUSA, ANTIGO PATRÃO DO PATRIARCA DA FAMÍLIA REIS

trazem chocolates”, lembrou o vizinho, dono da oficina de bicicletas e motorizada­s ainda hoje instalada na rua dos Caneiros, em Travanca.

Na Branca, em Albergaria-a-Velha, o dia dos funerais de Ana Bela e Paulo Rafael juntou centenas de pessoas na igreja. O rosto fechado dos amigos e o choro de revolta de muitos marcaram todas as cerimónias fúnebres. Os dois caixões foram depois levados para o cemitério da freguesia, do outro lado da estrada, um percurso curto de alguns passos até à última morada de Ana Bela e Paulo Rafael. Três anos depois das suas mortes num bloco de apartament­os de Payerne, na Suíça, uma placa e flores assinalam o jazigo e recordam duas vidas que acabaram prematuram­ente.

O coletivo de juízes do Tribunal Criminal de La Broye e Nord Vaudois não teve contemplaç­ões para com o português, condenado aos 53 anos a uma sentença para a vida: “O crime foi premeditad­o e executado de forma fria, os tiros foram disparados com intenção de matar, direcionad­os para a cabeça e para o tórax.”

Américo Reis foi ainda condenado a pagar uma indemnizaç­ão de cerca de 240 mil francos suíços (223 mil euros) à família de Ana Bela. O Código Penal suíço permite um pedido de revogação da pena perpétua aos quinze anos de cumpriment­o [ver caixa]. Se Américo Reis for libertado, nessa altura, será de imediato deportado para Portugal. A família e amigos de Ana Bela têm consciênci­a desta possibilid­ade. Não estão, por isso, aliviados ou satisfeito­s com esta pena perpétua aplicada ao ‘monstro da Feira’. Para estas pessoas, o inferno ainda não terminou.

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Américo Reis, 53 anos, o emigrante que matou a mulher e o filho a tiro em 2018, foi condenado a prisão perpétua, esta segunda-feira, pela justiça suíça, mas pode ser solto daqui a 15 anos
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2 1As vítimas: Ana Bela e Paulo Rafael, ainda bebé 2 Bloco de apartament­os em Payerne, onde foi cometido o duplo homicídio, a 25 de abril de 2018 3Selo da polícia na porta do apartament­o 4Polícias suíços junto ao local do crime
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Ana Bela Reis viveu um calvário de violência até ser assassinad­a pelo marido aos 42 anos
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DIREITOS RESERVADOS 2
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 ??  ?? 1 1 Vivenda da família Reis na vila da Branca, Albergaria-a-Velha 2 Arsenal encontrado pela GNR em casa de Américo Reis, na sequência de buscas efetuadas depois do duplo homicídio da mulher e do filho mais velho do emigrante
3 Maria Mendes, vizinha e amiga de infância de Ana Bela: “Não queria acreditar, fiquei fora de mim”
4 Funeral de Ana Bela Reis e de Paulo Rafael: familiares e amigos das vítimas têm medo do possível regresso do ‘monstro da Feira’ depois de cumpridos 15 anos de pena
1 1 Vivenda da família Reis na vila da Branca, Albergaria-a-Velha 2 Arsenal encontrado pela GNR em casa de Américo Reis, na sequência de buscas efetuadas depois do duplo homicídio da mulher e do filho mais velho do emigrante 3 Maria Mendes, vizinha e amiga de infância de Ana Bela: “Não queria acreditar, fiquei fora de mim” 4 Funeral de Ana Bela Reis e de Paulo Rafael: familiares e amigos das vítimas têm medo do possível regresso do ‘monstro da Feira’ depois de cumpridos 15 anos de pena
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DIREITOS RESERVADOS 4
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