Correio da Manhã Weekend

O porto de Marselha

- TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho

Élei da vida, pelo que não deveria ser surpresa, mas um atrás doutro vão desaparece­ndo do nosso convívio aqueles que por razão da sua personalid­ade, pitoresco dos hábitos, ou porque destoavam com as suas manias, faziam parte do dia-a-dia, e mesmo quando uma vez por outra se tornavam cansativos nada custava desculpá-los ou, como alguns ainda dizem, passar a esponja sobre o assunto.

Bico-de-obra no particular do Carlos Varizo, que em Maio entregou a alma ao Criador. Aborrecido nele era referir-se à progenitor­a como “a mamã”, o que num cinquentão soava a vício, mas esse infantilis­mo fazia sorrir e facilmente se lhe perdoava. Custoso era aturá-lo no minucioso relato da sua estadia em Marselha, quando o navio em que então andava embarcado teve uma avaria, e ele ficou lá dois meses, com poucos afazeres e tempo de sobra para explorar uma cidade onde nunca estivera, e de que só conhecia a má fama que lhe davam alguns filmes e um romance de Simenon, que se lembrava de ter lido ainda rapaz.

Equipado com esse pouco, e porque na tripulação não tinha amigos, deitara-se sozinho a explorar a cidade, e então o ouvi-lo, ou melhor o aturá-lo, requeria uma paciência que poucos tinham, virando-lhe as costas quando recomeçava a descrever as vistas, a barafunda do Vieux Port, a impressão de participar num filme, as ruas e os becos apinhados de figuras exóticas, em muitos rostos um ar de ameaça.

Os que por amizade ou cortesia continuava­m atentos, sabiam que chegado o momento em que referia esse “ar de ameaça”, fazia uma pausa a modo de quem suspende a respiração antes de empurrar uma porta, e “entravam” com ele no bar onde Chantal lhe sorrira, o iniciaria no apreço do pastis e, nas semanas que depois tinham passado juntos, dado prova que se fossem todas de igual calibre, nas artes da cama as francesas eram imbatíveis.

A afirmação sublinhava-a ele com um sorriso de connaisseu­r, indiferent­e a que sendo ali o único solteiro,

ABORRECIDO NELE ERA REFERIR-SE À PROGENITOR­A COMO “A MAMÔ

causasse nalguns um certo acanhament­o, e noutros o sorriso amarelo que disfarça a intenção de reagir à bruta.

Curioso é que desde que o levámos à última morada, parecemos inclinados a retocar a imagem que dele tínhamos, eliminando pouco a pouco as bizarrias do seu carácter, como o pasmo de ter visto tanto cartaz de Marine Le Pen e o apreço que lhe merecia a luxúria das francesas.

Sobre o que os outros pensam e como agem não me vou pronunciar, mas às vezes tenho a impressão de que sem o dizer ainda alto e bom som vamo-nos vergando à nova censura.

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