AS (QUASE) MIL PÁGINAS DO EXÍMIO BATERISTA
Pelas ‘Memórias’ de Francisco Pinto Balsemão passam todos os protagonistas
As decisões tiveram critérios empresariais. O jornalismo independente e livre só é possível em empresas que ganham dinheiro
Num dos capítulos da autobiografia `Memórias', Francisco Pinto Balsemão faz uma longa e pormenorizada descrição sobre o “'Expresso', a SIC e outras coisas”, desde o jornal `A Capital' à `Visão' ou à Publivídeo.
Nas decisões que teve de tomar pesou mais o jornalista ou o empresário que também é?
– As decisões tiveram, na sua base, critérios empresariais. O jornalismo independente e livre só é possível em empresas que ganham dinheiro. Caso contrário, têm de recorrer a capitais de terceiros e isso, como é óbvio, condiciona gravemente a respetiva independência, respondeu, por email, à ‘Domingo’ o autor desta que é também, uma janela sobre a sociedade portuguesa, sobretudo a das últimas cinco décadas, a começar por Marcello Caetano, que o convidou a integrar a ‘ala liberal’, a Kaúlza de Arriaga, em cujo gabinete esteve durante o serviço militar e com quem conheceu “Angola e Moçambique, de lés a lés” – e sobre quem escreve “aprendi muito com ele, desde saber decidir e não ter medo das decisões tomadas a ser capaz de ditar cartas ou ordens, enquanto, ao mesmo tempo, lia os recortes de Imprensa ou relatórios que chegavam de África”; a Sá Carneiro, de quem foi ministro-adjunto e de quem herdou a chefia do Governo porque o Cessna caiu em Camarate. Depois foi eleito, pela AD, primeiro-ministro em 1981, cargo em que permaneceu até 1983, quando se demitiu.
– Fui eu que quis sair do Governo, depois de legitimar o poder até aí exercido, através de uma clara vitória nas eleições autárquicas de 1982. A minha saída pressupôs que deixei tudo preparado para que a minha sucessão não levantasse problemas. E tanto é assim que a Aliança Democrática, sob o meu impulso, apresentou ao Presidente da República uma solução governamental, na qual o meu sucessor seria o meu ministro da Educação e das Universidades, o Professor Vítor Crespo. Foi o Presidente da República que não aceitou esta solução, apesar de ter o parecer favorável do Conselho de Estado, e decidiu convocar eleições legislativas, disse-nos. O Presidente da Republica é Ramalho Eanes - de quem e a propósito do Conselho de Revolução, escreve “Nunca percebi se o General Ramalho Eanes, que a ele presidia, não conseguia controlar as coisas, as deixava andar ou queria que elas corressem como corriam” - e a nossa pergunta era: A sua saída pressupõe que não tinha
condições para continuar. Gostaria de ter tido as condições que lhe permitissem levar ao até ao fim a ideia que tinha para o País?
Em ‘Memórias’ estão também os tempos do ‘Diário Popular’, propriedade do tio Xico, ou Francisco PatrícioPintodeBalsemão,oseupadrinho e irmão do seu pai, onde se estreou no jornalismo e onde abriu “a porta da redação a Senhoras” “sempre que me vê, Maria Antónia Palla (mãe de António Costa) lembra que fui eu que permiti o seu acesso a um jornal nacional”-, à fundação do ‘Expresso’, onde, como escreve, quiseram “matar o pai”:
– Pretendi apenas utilizar a metáfora freudiana de ‘matar o pai’. Ou seja, várias pessoas que refere, e outras, tentaram fazer melhor do que o ‘Expresso’ e, se possível, destruí-lo. Penso que não conseguiram nem uma coisa nem outra”, justifica-nos o trecho onde escreve, entre outros, os nomes de José António Saraiva, Vicente Jorge Silva, Henrique Granadeiro, Emídio Rangel ou Marcelo Rebelo de Sousa, e reserva a cada um um parágrafo seco, mas explicativo.
Já em “As várias fases da ‘Saraivada’”, dedicada aos 21 anos de José António Saraiva como diretor do semanário que Balsemão fundou em 1973, conta que, a determinada altura, o “Diretor ficou confinado ao primeiro caderno”. “Esta separação de poderes foi-se acentuando. Saraiva não se atrevia sequer a entrar no 3º andar da Duque de Palmela, onde pontificava Vicente Jorge Silva e o seu estado-maior. (...) Eu tinha frequentemente de arbitrar estes conflitos.”
Mas o livro arranca efetivamente na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, na casa da família onde viveu com os pais e que hoje é a sede do Grupo Impresa, com a descrição do bairro e de todos aqueles que viviam na casa, até as “seis ou sete criadas ou empregadas domésticas, como mais tarde passou a dizer-se” e onde este filho único de pais tardios começou por ter ensino doméstico; e onde o chumbo no 2º ano da Faculdade em Direito - “um dos maiores choques da minha vida” foi sentido por todos quase como “um luto profundo”.
– As circunstâncias em que os meus filhos nasceram e o modo como foram educados são diferentes daquelas que vivi na minha infância. Isso não quer dizer que não tenha procurado transmitir-lhes os valores e os objetivos que herdei dos meus pais.”
Esta edição da Porto Editora chega às livrarias poucos dias depois de o seu autor completar 84 anos.
- Procurei ser tão rigoroso e correto quanto possível, mas não deixei de, por uma questão de honestidade, alertar para as ‘partidas’ que a nossa própria memória nos prega de vez em quando - explicou Balsemão, a propósito do prefácio onde precavê os leitores sobre esta surpreendente, porque muito pormenorizada, rememoração de quase mil páginas, que terminam com a confissão: “Felizes os que têm fé.”
Da política e dos políticos
Os muitos amigos, mais ou menos amigos, as simpatias ou as inimizades, as constantes ou as de ocasião, estão descritas, e documentadas, por vezes, através de cartas. A amizade solar com Mário Soares, por exemplo, foi iniciada num almoço em 1968 - “conversámos muito, e acho que gostámos um do outro” organizado por Raul Rêgo, diretor do ‘República’: “Qual não é o meu espanto quando, três ou quatro dias depois, recebo, no ‘Diário Popular’, uma carta (...) na qual ele praticamente me insultava”, e que se veio a verificar ter sido forjada pela PIDE.” A relação nublada com Cavaco Silva, que conjuntamente com Eurico de Melo liderava a oposição interna a Balsemão, e sobre quem escreve: “durante todo o meu tempo de governo, Cavaco esteve sempre ativo
O título ‘O escorpião e a fábula’ serve para falar de Marcelo
Fui eu que quis sair do Governo, depois de legitimar o poder até aí exercido, através de uma vitória nas autárquicas
e destrutivo”, nas páginas em que detalha os bastidores do partido da altura e que a esse propósito confessa que, em meados de agosto de 81, simplesmente “enchi o saco”. “Estava farto (...) de ser apunhalado pelas costas.”
A propósito de Ramalho Eanes, com quem coabitou institucionalmente, por exemplo, aparece uma carta do Natal de 1981, recebida quando a família do autor se retirava para umas férias na estância de ski de Baqueira/Beret, “onde já tínhamos encontros marcados com o Rei Juan Carlos”, de quem foi amigo na juventude. Eanes acusa-o de “neutralismo inquietante” a propósito de uma notícia de ‘A Capital’ sobre um comício de solidariedade com a Polónia em que se gritou “Eanes para a Sibéria” - como ficou escrito no vespertino.
Conta que a mãe, que o ia ver falar nos comícios, “vibrava, tomava, como sempre, o meu partido e ai de quem me fizesse mal ou que ela entendesse que me queria fazer mal (Marcelo Rebelo de Sousa que o diga, que ainda recebeu algumas descomposturas dela)”.
Entre as muitas ocasiões em que o atual Presidente da República, que foi jornalista e diretor do ‘Expresso’, é referido, destaca-se a entrada, porque o título é insidioso, “O escorpião da fábula?”, em que diz que “estava consciente do perigo de ter Marcelo dentro do governo, pelas inconfidências que iacometereeventuaisintrigasque poderia criar”.
‘Memórias’ é, de uma alguma forma, um acerto com a vida e os seus intervenientes, coisa que se deve às autobiografias dos que muito já viveram; dos convites de Jorge Jardim Gonçalves para almoçar no BCP, “antes de irmos para a mesa folheava, lentamente, um dossiê com recortes de prosas do jornal que, em seu entender tinha informação errada ou opiniões com as quais ele não concordava” (“foi nesses tempos que o BCP cortou por duas vezes a publicidade no ‘Expresso’”) ou a Ricardo Salgado, que levou às reuniões do Clube de Bilderberg, a que pertence (e a mais 75 portugueses), sobre o qual explica que as desavenças, para além do “confronto grave” quando ele cortou a publicidade à Impresa, “incidiram, aliás, sempre sobre o apoio por ele dado à Ongoing”. Sobre Daniel Proença de Carvalho escreve que “está na berlinda pelo menos desde 1975 (...) Foi ministro da Comunicação Social, presidente da RTP, mandatário de Freitas do Amaral e de Cavaco Silva, defendeu António Champalimaud, Ricardo Salgado e José Sócrates. Toca bem guitarra baixo”. Balsemão toca bateria. Como é a liberdade de um homem de 84 anos que escreve sobre o seu passado?
– É uma liberdade total, embora exercida sempre com a preocupação de não insultar ou atentar gravemente terceiros. Orgulho-me de ter contribuído para que houvesse mais liberdade em Portugal. Não deixo, no entanto, de me preocupar com as ameaças ao exercício da liberdade à escala mundial e até nacional, perante os perigos causados pelos novos ‘poderes globalitários’, pela desinformação organizada e pelos perigos de ciberguerra’.