Correio da Manhã Weekend

OS VELHOS-POBRES

- VICTOR BANDARRA ANTIGA ORTOGRAFIA

Em Portugal, a pobreza é hereditári­a. O círculo vicioso e viciado da pobreza e até da fome vemdehámui­to,eapandemia­veioconfir­mar isso mesmo.

Segundo um estudo recente (Fundação Francisco Manuel dos Santos), a pobreza aumentou com a pandemia, mas são mais os “regressado­s à pobreza” do que os “novos pobres”. Como quem diz: quem era rico ou remediado assim ficou, quem estava a sair da pobreza a ela voltou. E cumpre-se sempre a regras dos três D da pobreza: Divórcio, Desemprego e Doença. E as crianças, senhores? Por muito que Costa prometa combate efectivo à pobreza infantil, a taxa da pobreza nas crianças tem sido sempre superior à taxa global. Que o diga Júlia, jovem mãe divorciada, que sente todos os dias a pobreza, no estômago e no bolso. Com um filho criança e outro adolescent­e, a mulher há muito deixou de contar com o pai das crianças, conta apenas com ela e com os biscates que faz como mulher-a-dias, mais o Rendimento Social de Inserção. Por junto, embolsa pouco mais do que o ordenado mínimo oficial. Júlia já herdou a pobreza; os pais sempre viveram num bairro social dos subúrbios de Lisboa e o dinheiro sempre lhe entrou em casa a conta-gotas bem espaçadas.

Júlia sobreviveu, é uma desenrasca­da e nunca deixou que os filhos sofressem de fome a sério. Mas está desejosa que o filho mais velho, Rui, volte para a escola. Por lá tem direito a almoço e lanche de borla. Atenta às notícias via Net, dá-lhe para tentar perceber o que é que vai mudar com a nova lei sobre a alimentaçã­o nas cantinas escolares e nas máquinas de venda automática, em prol de hábitos alimentare­s saudáveis. E lá descobre uma catrefa de alimentos proibidos, e outros obrigatóri­os, a partir de Setembro, em exaustivas determinaç­ões de combate (no papel) ao sal e aos açúcares. Fica a saber que são proibidos os bolos (bolas de Berlim, donuts e afins, os preferidos do filho), também os salgados (rissóis, croquetes ou pastéis de bacalhau), mais o ketchup, a maionese e a mostarda, mais os chocolates, refrigeran­tes com gás e por aí fora. Quanto a alimentos obrigatóri­os ou aconselhad­os, depois da água, potável já se vê, vêm os sumos de fruta, os legumes e o leite (está proibido o leite gordo). Está lá tudo, na Net, com letras miudinhas, do género dos contratos de seguros. Por exemplo, na escola só “snacks à base de leguminosa­s que contenham pelo menos 50% de leguminosa­s e um teor de lípidos por 100 g inferior a 12 g e um teor de sal inferior a 1g”. Está-se mesmo a ver a ASAE, em nome de uma alimentaçã­o saudável das crianças, a controlar milhares de máquinas de venda de alimentos e de cantinas escolares espalhadas pelo País! Mas que a Lei está bem pensada, lá isso está!

Júlia remói as novas regras de bem comer nas cantinas, enquanto arruma na cozinha minúscula os dois saquitos com compras, selecciona­das pelo mais baratinho no supermerca­do, vistos e revistos os preços do fiambre, da lata de atum e da pizza, das salsichas, do frango e dos bifinhos de porco. Da sala, Rui grita a pergunta do costume: “Mãe! O que é o jantar?” Júlia informa o rapaz. “Pizza!” É o menu habitual de fim de semana. “Outra vez pizza?” Júlia suspira. “É o que há!” Sem ironias desnecessá­rias, não resiste ao remoque de pobre encartada.

Da sala, Rui grita a pergunta do costume: ‘Mãe! O que é o jantar?’

“Quando começares a escola já podes comer coisas saudáveis!”

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