OS VELHOS-POBRES
Em Portugal, a pobreza é hereditária. O círculo vicioso e viciado da pobreza e até da fome vemdehámuito,eapandemiaveioconfirmar isso mesmo.
Segundo um estudo recente (Fundação Francisco Manuel dos Santos), a pobreza aumentou com a pandemia, mas são mais os “regressados à pobreza” do que os “novos pobres”. Como quem diz: quem era rico ou remediado assim ficou, quem estava a sair da pobreza a ela voltou. E cumpre-se sempre a regras dos três D da pobreza: Divórcio, Desemprego e Doença. E as crianças, senhores? Por muito que Costa prometa combate efectivo à pobreza infantil, a taxa da pobreza nas crianças tem sido sempre superior à taxa global. Que o diga Júlia, jovem mãe divorciada, que sente todos os dias a pobreza, no estômago e no bolso. Com um filho criança e outro adolescente, a mulher há muito deixou de contar com o pai das crianças, conta apenas com ela e com os biscates que faz como mulher-a-dias, mais o Rendimento Social de Inserção. Por junto, embolsa pouco mais do que o ordenado mínimo oficial. Júlia já herdou a pobreza; os pais sempre viveram num bairro social dos subúrbios de Lisboa e o dinheiro sempre lhe entrou em casa a conta-gotas bem espaçadas.
Júlia sobreviveu, é uma desenrascada e nunca deixou que os filhos sofressem de fome a sério. Mas está desejosa que o filho mais velho, Rui, volte para a escola. Por lá tem direito a almoço e lanche de borla. Atenta às notícias via Net, dá-lhe para tentar perceber o que é que vai mudar com a nova lei sobre a alimentação nas cantinas escolares e nas máquinas de venda automática, em prol de hábitos alimentares saudáveis. E lá descobre uma catrefa de alimentos proibidos, e outros obrigatórios, a partir de Setembro, em exaustivas determinações de combate (no papel) ao sal e aos açúcares. Fica a saber que são proibidos os bolos (bolas de Berlim, donuts e afins, os preferidos do filho), também os salgados (rissóis, croquetes ou pastéis de bacalhau), mais o ketchup, a maionese e a mostarda, mais os chocolates, refrigerantes com gás e por aí fora. Quanto a alimentos obrigatórios ou aconselhados, depois da água, potável já se vê, vêm os sumos de fruta, os legumes e o leite (está proibido o leite gordo). Está lá tudo, na Net, com letras miudinhas, do género dos contratos de seguros. Por exemplo, na escola só “snacks à base de leguminosas que contenham pelo menos 50% de leguminosas e um teor de lípidos por 100 g inferior a 12 g e um teor de sal inferior a 1g”. Está-se mesmo a ver a ASAE, em nome de uma alimentação saudável das crianças, a controlar milhares de máquinas de venda de alimentos e de cantinas escolares espalhadas pelo País! Mas que a Lei está bem pensada, lá isso está!
Júlia remói as novas regras de bem comer nas cantinas, enquanto arruma na cozinha minúscula os dois saquitos com compras, seleccionadas pelo mais baratinho no supermercado, vistos e revistos os preços do fiambre, da lata de atum e da pizza, das salsichas, do frango e dos bifinhos de porco. Da sala, Rui grita a pergunta do costume: “Mãe! O que é o jantar?” Júlia informa o rapaz. “Pizza!” É o menu habitual de fim de semana. “Outra vez pizza?” Júlia suspira. “É o que há!” Sem ironias desnecessárias, não resiste ao remoque de pobre encartada.
Da sala, Rui grita a pergunta do costume: ‘Mãe! O que é o jantar?’
“Quando começares a escola já podes comer coisas saudáveis!”