Correio da Manhã Weekend

JURISPRUDÊ­NCIA FIXADA 20 ANOS DEPOIS

A dúvida era se o crime se consumava na aprovação do projeto ou na transferên­cia do subsídio

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Os artigos de muitas leis “estavam redigidos como uma picada armadilhad­a na Guerra Colonial, cheios de buracos e perigos escondidos”, escreveu o jornalista Eduardo Dâmaso, no livro ‘Corrupção – Breve História de um Crime que Nunca Existiu’ (ed. Objectiva). E, como nos casos do Fundo Social Europeu (FSE), perante a complexida­de do texto dessas normas, muitas das interpreta­ções dos juízes eram antagónica­s.

Uma questão jurídica aparenteme­nte tão básica como qual o momento em que se consumava o crime nos processos relativos ao FSE demorou duas décadas até ser, de uma vez por todas, esclarecid­a. A querela que dividia os magistrado­s estava relacionad­a com a data da aprovação do projeto daquele apoio comunitári­o, destinado à formação profission­al, ou com o dia em que tinha sido obtida a verba de Bruxelas pela entidade que se candidatar­a. Face a uma nova e complexa criminalid­ade de “colarinho branco” (com a descoberta relativame­nte tardia da prática dos delitos e os prazos muito apertados para ser deduzida a acusação), este problema não era um simples pormenor – e, em muitas situações, facilitou a prescrição e evitou condenaçõe­s.

Dois exemplos bastam para se perceber a contradiçã­o entre os juízes ao aplicarem a mesma lei. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 31 de outubro de 2001, decidiu situar a consumação do crime no momento “do despacho que aprova o projeto de candidatur­a ao subsídio”. No ano seguinte, uma deliberaçã­o do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 9 de outubro de 2002, era oposta, pois considerav­a que era a partir da “transferên­cia do dinheiro para a titularida­de e a disponibil­idade do beneficiár­io”. E havia tribunais superiores a inclinarem-se num sentido e outros no seu contrário.

A controvérs­ia só acabou em 2006, quando o plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça – ao apreciar a questão, que tinha sido objeto de um recurso extraordin­ário interposto por um cidadão – uniformizo­u a jurisprudê­ncia no Acórdão nº 2/2006, publicado no ‘Diário da República’ a 4 de janeiro: “O crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, consuma-se com a disponibil­ização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente.”

Uma “extraordin­ária peça de história”, elogia, no livro, Eduardo Dâmaso. Mas, logo a seguir, o jornalista também sublinha que “esta decisão aconteceu 20 anos depois do início da entrada do dinheiro europeu em Portugal e das primeiras fraudes”.

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A querela que dividia os magistrado­s não era um simples pormenor: facilitou a prescrição e evitou condenaçõe­s

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