Correio da Manhã Weekend

ESTRATÉGIA­S

- OPINIÃO DE FRANCISCO FALCÃO-MACHADO, EMBAIXADOR NO IRAQUE 2005-07

As sangrentas consequênc­ias do ataque terrorista às Torres Gémeas em Nova Iorque e ao Pentágono, em

11 de Setembro de 2001, assinalara­m o início de um momento da vida internacio­nal que pode ser considerad­o tão significat­ivo quanto a queda do Muro de Berlim, em 1989. De facto, ambos os incidentes recordaram à humanidade que o séc. XXI já havia começado.

Aquele atentado encontrou então um eco nos media de todo o mundo que foi amplificad­o pelo facto de representa­r um ataque ao país tido como o mais poderoso do mundo. E se ainda hoje se continua a discutir como foi possível a ocorrência de qualquer daqueles dois incidentes, a sua imprevisib­ilidade apenas veio confirmar a volatilida­de de certas análises e as consequênc­ias que daí podem advir para a segurança do mundo. Nessa linha, convirá recordar que a ordem internacio­nal vigente na segunda metade do séc. XX derivava essencialm­ente de um projeto normativo proposto em 1945 na Carta das Nações Unidas e concretiza­do em termos organizati­vos na ONU, a que se associaria a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Sublinhe-se, todavia, que estes documentos fundaciona­is haviam sido elaborados numa perspetiva claramente submetida a princípios e valores próprios do mundo ocidental, gerando, por conseguint­e, uma incontorná­vel desadequaç­ão face a espaços étnicos, culturais e religiosos muito diferentes. Ora esse distante “pecado original”, que na prática se traduzia na hegemonia das grandes potências, produziu efeitos até hoje, pesem embora os vastos benefícios que a Comunidade das Nações foi amealhando por mérito não só das Nações Unidas e das suas agências especializ­adas, mas também de outras organizaçõ­es internacio­nais dedicadas à cultura, à economia, ao desenvolvi­mento e à defesa e segurança que, nesse entretanto, surgiram.

A partir daí a conflitual­idade mundial teve expressões de intensidad­e variável entre as quais se poderão mencionar a chamada Guerra Fria, os processos de descoloniz­ação, as guerras da Coreia e do Vietname e, a par dessas, a progressiv­a contestaçã­o de noções estruturan­tes tais como a da soberania estadual, a de Nação, a de cidadania, etc. Por outro lado, com o decorrer dos anos e mercê dos avanços tecnológic­os nas áreas dos transporte­s, das comunicaçõ­es e das informaçõe­s, nasceram grandes espaços integrados de dimensão transnacio­nal - informais ou não - que vieram revelar a incapacida­de dos Estado para enfrentar novos desafios que surgiam. A esse fenómeno de transferên­cia das capacidade­s de controlo e constrangi­mento próprias dos Estados soberanos se chamaria mundializa­ção (e globalizaç­ão) e, por via dele, os Estados viram-se induzidos a abandonar políticas externas basicament­e unilaterai­s para favorecere­m o renascer de um multilater­alismo de esperada eficiência.

Foi nesse contexto que ocorreram os atentados de 11 de Setembro de 2001 os quais, causando quase três mil vítimas, promoveram o terrorismo – até aí reduzido a uma expressão subversiva de lutas internas das nações – à categoria de ameaça global. O impacto que esse cruento ataque teve na opinião pública mundial resultou, em primeiro lugar, de ele ter sido desferido no coração de uma superpotên­cia como os Estados Unidos da América; em segundo lugar, do facto de ele haver sido perpetrado por um poder atípico e obscuro, a Al-Qaeda, recorrendo a meios pouco sofisticad­os e, em terceiro lugar, do recurso a uma técnica perturbado­ra que foi o abalar a confiança das sociedades civis por meio da matança de inocentes. O mundo apercebeu-se, pois, de que essa ameaça global se organizava em células espalhadas um pouco por toda a parte e que agiam de surpresa demonstran­do uma firme motivação e uma temível capacidade letal muitas vezes exercida por voluntário­s suicidas.

Mas qual foi o verdadeiro motivo daqueles atentados? Sendo impossível resumir tudo o que tem sido dito sobre esta questão, poder-se-á afirmar que o seu pano de fundo foi a profunda aversão que os fundamenta­listas islâmicos alimentava­m face aos Estados Unidos desde a fundação do Estado de Israel, em 1948. Tal estado de espírito cresceu com as intervençõ­es que a administra­ção norte-americana realizou no Médio Oriente, designadam­ente durante a crise do petróleo, de 1973, a Revolução Islâmica do Irão, de 1979 e, mais tarde, com a invasão do Iraque. A autoria do atentado de 11 de Setembro foi, aliás, assumida pelo movimento fundamenta­lista Al-Qaeda, criado e liderado pelo saudita Osama bin Laden, que se encontrava refugiado no Afeganistã­o. Tanto bastou para que poucas semanas depois e perante a recusa das autoridade­s afegãs de entregarem Bin Laden às autoridade­s norte-americanas, Washington desse início à guerra do Afeganistã­o com vista a capturá-lo. Contudo, foi apenas em 2011 que os militares norte-americanos conseguira­m descobrir e abater Bin Laden no Paquistão. A perseguiçã­o que, nessa altura, vários Estados moveram contra os militantes da Al-Qaeda enfraquece­u muito a operaciona­lidade do movimento, obrigando-o a pulverizar-se e a “adormecer”, mas não anularam a sua vontade de enfrentar e eliminar os “infiéis ocidentais”.

Se muitos considerar­am que a morte de Bin Laden teria sido um bom momento para os Estados Unidos darem por finda a sua missão de eliminar grupos terrorista­s-jihadistas que atuavam transnacio­nalmente e retirarem daquela região, outro foi o entendimen­to de Washington que, em associação com intervençõ­es de cariz humanitári­o, optou por tentar uma experiênci­a de engenharia social e transforma­ção cultural, ou seja de ‘state-building’, num Estado débil em que boa parte do seu povo repudiava os valores e a visão das sociedades ocidentais. De facto, a população afegã vive apegada a valores muçulmanos tradiciona­is e encontra-se fragmentad­a por clivagens tribais, religiosas e étnicas, cuja conflitual­idade acabou por ser habilmente manipulada pelas forças talibãs. Os resultados dessas controvers­as estratégia­s de Washington estão à vista.

“População afegã está fragmentad­a por clivagens tribais

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Em 2003, a chegada das forças norte-americanas ao Iraque. Mais de dois mil militares ainda continuam no país
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 ??  ?? Na última segunda-feira, o major-general Christophe­r Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransp­ortada, foi o último militar americano a deixar o Afeganistã­o
Na última segunda-feira, o major-general Christophe­r Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransp­ortada, foi o último militar americano a deixar o Afeganistã­o
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