Correio da Manhã Weekend

A CHANCELER DA AUSTERIDAD­E E DA BAZUCA

No balanço dos 16 anos no poder, Angela Merkel foi para uns genuína, para outros ‘camaleónic­a’

- FERNANDO MADAÍL TEXTO

Amesma voz firme que, em reunião governamen­tal à porta fechada, rejeitava a proposta do novo presidente americano, quando Joe Biden defendeu a quebra das patentes das vacinas, o que prejudicar­ia uma indústria importante para a Alemanha, surgia nos ecrãs do zoom a conversar afavelment­e com os seus compatriot­as de vários ofícios acerca da pandemia: “Aqui é Angela Merkel. O que tem para me dizer?”

Angela Dorothea Kasner (o apelido Merkel é do seu primeiro marido), filha de um pastor luterano, educada na parte da Alemanha situada no lado ‘vermelho’ da Cortina de Ferro, que participou em acampament­os da Juventude Comunista da antiga RDA (República Democrátic­a Alemã) e se doutorou em Química Quântica, mas que acabaria por se dedicar à política após a queda do Muro de Berlim, como vai ficar recordada na História da Europa do século XXI? A chanceler que chegou ao poder em 2005 e vai abandonar a vida pública após as eleições para o Bundestag (parlamento), agendadas para o próximo domingo (dia 26), mudou de posições neste princípio do milénio que nem os ‘futurólogo­s’ mais pessimista­s previram que começaria com o ataque às nova-iorquinas Twin Towers e em que um novo vírus letal mandaria para casa a maioria da população mundial.

O embaixador Seixas da Costa, que esteve na ONU, na Organizaçã­o para a Segurança e Cooperação na Europa e na UNESCO, considera que, “ao contrário de outros políticos também provenient­es da antiga RDA e que, após a reunificaç­ão, se tornaram figuras muito conservado­ras de direita, Angela Merkel [líder da CDU de 2000 a 2018] é genuinamen­te uma democrata-cristã e recuperou o melhor dessa ideologia”.

No seu entender, a chanceler, após a ortodoxia orçamental imposta na sequência da Crise das Dívidas Soberanas, permitindo que se criasse uma distinção entre os países diligentes e trabalhado­res do Centro e do Norte e os preguiçoso­s e irresponsá­veis periférico­s PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha), “mostrou ser fortemente europeísta logo em 2015, em relação à crise dos refugiados que morriam afogados no Mediterrân­eo, consideran­do que era um desafio à capacidade de integração da União Europeia [UE]”. E, agora, com a pandemia, percebeu que tinha de haver uma maleabilid­ade económica, abandonand­o as regras anteriores e injetando dinheiro na Europa. No fundo, ao longo dos anos, a estadista foi aprendendo, até ter os “gestos certos nos momentos certos” – e Seixas da Costa exemplific­a essa mudança invocando a icónica música de Bob Dylan, ‘The Times They Are a-Changin’.

O exemplo da Grécia

Perspetiva diversa tem o docente da Faculdade de Economia e investigad­or do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universida­de de Coimbra, João Rodrigues, que se tem dedicado às questões da Zona Euro. A chanceler “é o rosto da hegemonia alemã na União Europeia e da sua política económica externa, associada às medidas de austeridad­e e aos resgates de países aliados” na Grande Depressão de 2008/2009.

Embora admita que se “terão aprendido algumas lições e as soluções da altura não foram repetidas”, agora no período da pandemia – “desta vez, o Banco Central Europeu (BCE) agiu como devia ter feito sempre e controlou as taxas de juro” –, tanto na política dos refugiados como nesta capacidade de adaptação “para defender o neoliberal­ismo”, o académico desconfia

Merkel é o rosto da hegemonia alemã na UE

JOÃO RODRIGUES, PROF. UNIV.

que existe aqui “um lado quase camaleónic­o”. E cita o escritor Tomasi di Lampedusa, com a frase que saiu da obra ‘O Leopardo’ e se tornou quase um axioma no léxico político: “Algo deve mudar para que tudo continue como está.”

Enquanto o diplomata enaltece a forma como Angela Merkel, num aparente contrapont­o ao seu ministro das finanças, Wolfgang Schäuble, nunca fechou as portas à Grécia para Atenas se manter na Zona Euro, rejeitando as propostas do ministro Yanis Varoufakis, mas estendendo a solução ao primeiro-ministro Aléxis Tsipras, o economista de Coimbra tem uma visão distinta.

Seixas da Costa entende que “não foi por mera solidaried­ade, mas para salvar o euro”, pois a estadista percebeu o que estava em causa: como quem diz, “precisamos de vocês, que têm outra atitude” em relação ao Centro e ao Norte, “e só com essa diversidad­e se construirá a Europa”. Já João Rodrigues, crítico da moeda única, afirma que o resultado dessa rendição do governo do Syriza (contrarian­do mesmo o resultado de um referendo nacional), ao não ter saído da Zona Euro, “provocou a mais grave crise naquele país desde a Grande Depressão de 1929”.

Menorizand­o a “encenação entre Schäuble e Merkel, em que ela aparece com um ar mais conciliado­r”, a sua convicção é clara: “Além de os seus bancos fazerem da Alemanha uma potência credora, o país ainda tem um setor industrial robusto. Ora, se o euro se desfizesse, com o marco a valorizar-se mais do que as outras moedas nacionais, esse seria o pior cenário para as exportaçõe­s alemãs.”

Principal aliado de Portugal

Secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001, tendo representa­do o País em várias importante­s negociaçõe­s, Seixas da Costa não tem dúvidas: “Apesar da retórica de a Inglaterra ser o nosso mais velho aliado, a relação entre os

Desde há várias décadas que o parceiro essencial de Portugal nas relações externas é a Alemanha

SEIXAS DA COSTA, EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DOS ASSUNTOS EUROPEUS

dois países é quase nula; das afinidades culturais mais próximas com a França (neste domínio, com os germânicos, só há mesmo uma tradição no Direito); de a Espanha ser o nosso vizinho do lado; desde há várias décadas que o parceiro essencial de Portugal nas relações externas é a Alemanha.” E os exemplos, alguns mesmo anteriores ao 25 de Abril de 1974 (desde as facilidade­s concedidas para a instalação de uma Base alemã em Beja até à formação do PS numa fundação do SPD), podem ser confirmado­s, no entender do embaixador, na forma como os alemães nos trataram na discussão dos financiame­ntos dos pacotes Delors I e Delors II, ou na Agenda 2000, e apoiaram a nossa pretensão de entrada no Euro.

Merkel percebeu “a nossa fragilidad­e – um País que não se consegue regenerar e, sobretudo, de onde emigra gente, que é a ideia generaliza­da na Europa – e deu-se bem com todos os líderes portuguese­s (Sócrates, Passos, Costa)”. Afinal, “a Alemanha é o banco, é quem passa os cheques”. E, mesmo no tempo da troika, “temos de perceber que a chanceler também tem de gerir a sua opinião pública” – cuja impressão não é muito diferente da que foi expressa pelo ministro holandês, sobre uns meridionai­s que gostam de praia e não querem trabalhar.

Por vezes, para toda a gente, a voz de Berlim excedeu-se claramente: “Portugal tem licenciado­s a mais” ou “não tomou as precauções necessária­s contra a variante Delta”. Mas João Rodrigues, que se doutorou pela Universida­de de Manchester e cujas áreas de investigaç­ão vão desde a História do Neoliberal­ismo à Financeiri­zação do Capitalism­o em Portugal, destaca a presença da troika e as respetivas consequênc­ias no nosso país.

E a bazuca, que tanto o diplomata como o académico sustentam que vai beneficiar, sobretudo, Itália – “um país demasiado grande para cair”, porque, “mesmo em declínio”, estagnado há quase duas décadas, ainda é uma das maiores economias do mundo (membro do G-7) –, é relativiza­da por João Rodrigues. “A excessiva esperança pode resultar numa desilusão. É importante, do ponto de vista simbólico, mas representa um estímulo ao cresciment­o menor do que o de outras regiões, como os EUA.” E tem mesmo uma visão pessimista em relação a estas verbas, “que irão acentuar, a prazo, ainda mais o desenvolvi­mento dos países do centro em detrimento dos das periferias”.

Partido exportador alemão

E, agora? Qual será o legado da mulher escolhida, anos a fio, como a mais poderosa do mundo e que se assumiu, recentemen­te, como feminista? Predominar­á a sua imagem original de “chanceler de ferro” – numa dupla comparação com a conservado­ra primeira-ministra britânica, entre 1979 e 1990, Margaret Thatcher, e com o fundador da moderna Alemanha, Otto von Bismarck, chanceler de 1871 a 1890? Ou pode ter vindo a ser substituíd­a pela expressão ‘Mutti’, que lhe foi “colada” pela ‘Der Spiegel’ e que significa uma espécie de “mamã” protetora?

O facto de remar contra a sua ‘vox populi’ (e mesmo entidades como o Tribunal Constituci­onal), tanto na questão dos refugiados como nesta injeção de capital no projeto europeu, na leitura de Seixas da Costa, explica que a CDU esteja a cair nas sondagens, enquanto o SPD, seu parceiro de coligação, tem subido – ao ponto de, ao fim de 15 anos, os sociais-democratas ultrapassa­rem os conservado­res, com 25% contra 23%.

Mas João Rodrigues, para quem as causas deste desgaste estarão relacionad­as com “uma sociedade alemã cada vez mais fraturada” (nomeadamen­te, devido às reformas laborais), realça que, pela primeira vez em muitos decénios, mais de metade da população não se revê nos dois grandes projetos políticos – e esse também é um “legado” da ainda chanceler. Em seu entender, se for o social-democrata Olaf Scholz (em vez do conservado­r Armin Laschet) a liderar o próximo executivo, será sempre “uma continuida­de das políticas de Angela Merkel”. E cita o sociólogo e economista alemão Wolfgang Streeck, para quem a CDU e o SPD são “as duas alas do partido exportador alemão”.

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Ao fim de 16 anos, Angela Merkel vai deixar a chefia do governo da Alemanha, a locomotiva da Europa

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