Correio da Manhã Weekend

AS CORES DA ESCRAVIDÃO

- VICTOR BANDARRA JORNALISTA ANTIGA ORTOGRAFIA

Para muitos bem pensantes e melhor falantes, como para outros tantos maldizente­s e xenófobos, o bairro amadorense da Cova da Moura tornou-se, à vez, um ícone exemplar

de segregação social e racial ou protótipo de criminalid­ade e malandrage­m. A maioria desta gente nunca entrou na Cova da Moura nem em outros bairros da periferia marginaliz­ada. Na Cova da Moura, agora transforma­da em saco de boxe em mirabolant­es consideraç­ões públicas de campanha autárquica, coabitam de há muito pessoas de várias cores e raízes, sobretudo cabo-verdianos e portuguese­s com ascendênci­a nas ilhas. Ruca, empregado de restaurant­e com origens em Santiago, Cabo Verde, cresceu na Cova da Moura, mas, ao casar, deu o salto para um pequeno apartament­o em Chelas. No trabalho, criou amizade com o colega Sílvio, brasileiro nascido numa favela carioca. Mas só ao fim de muito estudo mútuo se confessara­m com origens em bairros degradados. Sílvio suspira. “Tenho saudades é da feijoada lá no morro!” Ruca acena com a cabeça. “É porque nunca provaste a cachupa que a velha fazia lá na Cova da Moura...”

Ruca e Sílvio são fruto de intrincada­s contingênc­ias históricas e de um longo período de escravidão. Que não haja dúvidas: Portugal e Brasil foram os maiores traficante­s de escravos da história do hemisfério ocidental e há uma “história negra” que nunca foi contada nos manuais escolares portuguese­s ou brasileiro­s. A deputada Joacine Katar Moreira acaba de pôr o dedo na ferida - para alguns de uma perspectiv­a algo confusa e simplista. Joacine propõe que se retire do Salão Nobre da Assembleia da República sete pinturas que, diz ela, “chocam pela forma como os pintores escolheram retratar os povos colonizado­s”. Na verdade, os negros estão “em posições de subalterni­dade, permissivi­dade e infantilid­ade”, face à “forma heróica como é retratado o poder colonial e a sua empresa”. Nas pinturas, são factos a olho nu. O problema é que a História da escravidão nunca avançou apenas a preto e branco, é feita de várias cores e tonalidade­s. Por exemplo, a palavra “escravo” deriva do termo “eslavo”, já que a maioria dos escravos europeus do século XVII eram brancos eslavos. Mas o escritor brasileiro Laurentino Gomes (autor da trilogia ‘Escravidão’) não hesita. “A história negra foi sonegada” pelos dominadore­s brancos, no Brasil e em Portugal. E, sendo branco, conta que um professor negro lhe deu um argumento precioso: “Quem tem que falar sobre racismo são os brancos porque os negros sempre falaram e nunca lhes deram ouvidos.” Gomes até admite que o Presidente Marcelo possa vir a “pedir perdão” pelo passado esclavagis­ta português. Esta semana, ao escutar as acutilante­s e corajosas palavras de Laurentino Gomes na TV, Sílvio solta a mais séria das ironias. “Vê-se mesmo que estes brancos nunca dormiram na minha favela!” E logo Ruca. “Nem nunca acordaram na Cova da Moura...”

Há uma História negra que nunca foi contada nos manuais escolares...

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal