AS CORES DA ESCRAVIDÃO
Para muitos bem pensantes e melhor falantes, como para outros tantos maldizentes e xenófobos, o bairro amadorense da Cova da Moura tornou-se, à vez, um ícone exemplar
de segregação social e racial ou protótipo de criminalidade e malandragem. A maioria desta gente nunca entrou na Cova da Moura nem em outros bairros da periferia marginalizada. Na Cova da Moura, agora transformada em saco de boxe em mirabolantes considerações públicas de campanha autárquica, coabitam de há muito pessoas de várias cores e raízes, sobretudo cabo-verdianos e portugueses com ascendência nas ilhas. Ruca, empregado de restaurante com origens em Santiago, Cabo Verde, cresceu na Cova da Moura, mas, ao casar, deu o salto para um pequeno apartamento em Chelas. No trabalho, criou amizade com o colega Sílvio, brasileiro nascido numa favela carioca. Mas só ao fim de muito estudo mútuo se confessaram com origens em bairros degradados. Sílvio suspira. “Tenho saudades é da feijoada lá no morro!” Ruca acena com a cabeça. “É porque nunca provaste a cachupa que a velha fazia lá na Cova da Moura...”
Ruca e Sílvio são fruto de intrincadas contingências históricas e de um longo período de escravidão. Que não haja dúvidas: Portugal e Brasil foram os maiores traficantes de escravos da história do hemisfério ocidental e há uma “história negra” que nunca foi contada nos manuais escolares portugueses ou brasileiros. A deputada Joacine Katar Moreira acaba de pôr o dedo na ferida - para alguns de uma perspectiva algo confusa e simplista. Joacine propõe que se retire do Salão Nobre da Assembleia da República sete pinturas que, diz ela, “chocam pela forma como os pintores escolheram retratar os povos colonizados”. Na verdade, os negros estão “em posições de subalternidade, permissividade e infantilidade”, face à “forma heróica como é retratado o poder colonial e a sua empresa”. Nas pinturas, são factos a olho nu. O problema é que a História da escravidão nunca avançou apenas a preto e branco, é feita de várias cores e tonalidades. Por exemplo, a palavra “escravo” deriva do termo “eslavo”, já que a maioria dos escravos europeus do século XVII eram brancos eslavos. Mas o escritor brasileiro Laurentino Gomes (autor da trilogia ‘Escravidão’) não hesita. “A história negra foi sonegada” pelos dominadores brancos, no Brasil e em Portugal. E, sendo branco, conta que um professor negro lhe deu um argumento precioso: “Quem tem que falar sobre racismo são os brancos porque os negros sempre falaram e nunca lhes deram ouvidos.” Gomes até admite que o Presidente Marcelo possa vir a “pedir perdão” pelo passado esclavagista português. Esta semana, ao escutar as acutilantes e corajosas palavras de Laurentino Gomes na TV, Sílvio solta a mais séria das ironias. “Vê-se mesmo que estes brancos nunca dormiram na minha favela!” E logo Ruca. “Nem nunca acordaram na Cova da Moura...”
Há uma História negra que nunca foi contada nos manuais escolares...