GINASTAS AMERICANAS PEDEM JUSTIÇA CONTRA ABUSOS
Larry Nassar foi durante mais de 20 anos médico da seleção americana de ginástica e durante esse tempo abusou das jovens atletas, muitas ainda crianças, que devia tratar. O FBI só agora pediu desculpa por ter ignorado as denúncias ao longo de anos
Aginasta olímpica Simone Biles – vencedora de 25 medalhas em campeonatos mundiais ao longo da sua carreira – demorou a conseguir enfrentar os abusos sexuais que durante anos sofreu por parte de Larry Nassar, médico da equipa nacional de ginástica dos Estados Unidos durante duas décadas. Em novembro de 2017, quando Nassar assumiu em tribunal a culpa, Simone ainda não se tinha pronunciado – só viria a fazê-lo no ano seguinte. Foi quando ouviu a história da sua ex-companheira de equipa, Maggie Nichols, que pela primeira vez se deu conta de que também ela tinha sido vítima. “Lembro-me de procurar no Google ‘abuso sexual’, porque sei que algumas miúdas passaram por algo muito pior do que eu, posso garanti-lo. Ao início pensei que não tinha sido abusada, porque não tinha sido na mesma medida das outras raparigas, algumas amigas minhas passaram por situações muito, mas muito más. Eram as favoritas dele”, relatou numa entrevista. Mas a revolta foi crescendo e Simone Biles foi partilhando a dor que calara durante anos.
“Senti-me destruída e todas as vezes que tentava calar-me, mais alto as vozes gritavam na minha cabeça” – escreveu nas redes sociais a ginasta que teve de procurar ajuda psicológica para conseguir lidar com o trauma.
Na semana que passou, aquela que foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista ‘Time’ depôs perante o Comité Judicial do Senado dos EUA, num discurso emotivo em que culpou a federação norte-americana de ginástica e todo o sistema por permitir que o médico abusasse sexualmente dela e de centenas de ginastas (estima-se que mais de 300). Entre lágrimas e algumas pausas, Simone, que nos Jogos Olímpicos de Tóquio desistiu de disputar várias finais por fragilidade psicológica, foi clara em alargar as culpas à Federação de Ginástica dos Estados Unidos, ao Comité Olímpico e ao Paralímpico do país e ainda ao FBI. “Não
quero que nenhuma outra atleta sofra o horror que eu vivi. Sofremos porque ninguém fez o necessário para nos proteger. Falharam connosco e merecemos respostas. Nassar está no lugar a que pertence, mas aqueles que permitiram os abusos têm de prestar contas.”
O FBI reagiu aos depoimentos de Simone e das ginastas Aly Raisman, Maggie Nichols e McKayla Maroney, que estiveram com ela no Senado. “Peço desculpa pelo facto de tanta gente vos ter desiludido uma e outra vez. Peço especialmente desculpa pelo facto de haver pessoas no FBI que tiveram a oportunidade de parar este monstro em 2015 e falharam, e isso não tem desculpa. Nunca deveria ter acontecido e estamos a fazer tudo o que podemos para ter a certeza de que não volta a acontecer. Não tenho uma explicação plausível para nenhuma de vocês. Em nenhum planeta é aceitável aquilo que aconteceu neste caso”, reagiu o diretor do FBI. Christopher A. Wray anunciou no Congresso que Michael Langeman, o agente que falou com McKayla Maroney – colega de equipa de Biles –, foi despedido há duas semanas por ter arquivado a queixa da ginasta. Aly Raisman, por seu lado, acusou o mesmo organismo de tentar branquear o sucedido.
“Senti-me pressionada pelo FBI a aceitar um acordo com Larry Nassar. O agente que falou comigo desvalorizou o significado do meu abuso e fez-me sentir que não valia a pena investigar o meu caso. Lembro-me de estar sentada com o agente a tentar convencer-me de que não tinha sido assim tão mau. Foram precisos vários anos de terapia para perceber que os abusos de que fui vítima foram maus e que tinham importância”, partilhou.
175 anos de prisão
Larry Nassar foi condenado a 175 anos de prisão (a que se somam 60 anos de prisão por posse de pornografia infantil). “Não lhe confiava nem os meus cães”, disse-lhe a juíza Rosemarie Aquilina depois de ouvir 180 testemunhos das vítimas do médico, com 54 anos à data em que o escândalo rebentou, casado, católico, pai de três filhas, mais de duas décadas a fingir que cuidava das atletas que lhe passavam pelas mãos enquanto abusava delas. Foi a mesma juíza que depois de receber uma carta do agressor a pedir-lhe para ser dispensado de ouvir os últimos testemunhos lhe disse: “Passar quatro ou cinco dias a ouvir o que têm para dizer agora é uma coisa menor, considerando as horas de prazer que teve às custas delas, arruinando as suas vidas.” No fim do último depoimento, feito pela primeira atleta a apresentar queixa e a assumir publicamente os abusos de Nassar, a mesma juíza considerou: “Rachael [Denhollander] não criou um caso, criou um exército de sobreviventes.”
Depois de vários anos a ser desacreditada e ignorada, Rachael, hoje advogada, foi a primeira a apresentar queixa contra o antigo médico da seleção americana de ginástica, no seguimento da investigação tornada pública pelo jornal ‘IndyStar’ em agosto de 2016, e acabou por dar o mote para que centenas de atletas tornassem também públicos os seus casos. “Larry é o mais perigoso tipo de abusador”, disse a ex-atleta, que se cruzou com Nassar pela primeira vez em 2000, quando tinha apenas 15 anos. “Parece-me quase familiar o que todas as outras raparigas e mulheres disseram aqui, parecia que estávamos todas erradas e confusas. Ter-me molestado foi quase como apontar-me uma arma. Gosto tanto de ginástica que ainda hoje continuo a assistir, mas a olhar sempre para a câmara que aponta para os treinadores para ver se estava lá o Larry”, acrescentou.
Durante o julgamento, os depoimentos sucederam-se e as vítimas foram partilhando os momentos de dor que durante anos viveram em silêncio – porque a pessoa que devia cuidar delas era quem lhes fazia mal. Todas elas foram descrevendo como o médico as penetrou com os dedos, algumas vezes na presença dos próprios pais, afirmando que, com aquele “tratamento”, se evitava uma cirurgia. Foi o caso de Whitney Mergens,
que tinha 11 anos quando começou “os tratamentos” com Nassar e que disse aos pais que os perdoava por não a terem protegido. Ou o de Martha Stern, hoje médica, que contou ver Nassar como um herói, mesmo quando saía das suas consultas cheia de dores, tendo até hoje dificuldades para se relacionar sexualmente.
“Durante os tratamentos, ele mantinha uma mão na parte inferior das minhas costas, massajando, e a outra entre as minhas pernas, com os dedos dentro de mim. Eu chorava, porque doía, mas ele dizia que precisava de enfiar bastante”, relatou também Clasina Syrovy no tribunal.
Já Chelsea Markham tinha 10 anos quando foi abusada pelo médico. Depois de uma consulta, chegou ao pé da mãe em lágrimas. “Mãe, ele pôs os dedos dentro de mim e não tinha luvas”, contou, pedindo-lhe que não dissesse a ninguém pois tinha medo que isso a impedisse de se tornar uma ginasta profissional, o seu sonho. “Toda a gente vai saber e toda a gente vai julgar-me e os júris das provas também vão saber quando me virem competir”, disse Chelsea, que pouco tempo depois acabou por desistir da ginástica e começou a ter depressões e problemas relacionados com droga. Quem revelou as dores da ginasta em tribunal foi a mãe, uma vez que Chelsea – incapaz de lidar com o sofrimento provocado por Nassar – se suicidou em 2009, com 23 anos. Outra atleta contou que decidiu automutilar-se. “Queria ter o mesmo aspeto feio por fora que tinha por dentro.” Kyle Stephens, hoje com 26 anos, costumava passar os domingos em família com Nassar: os pais eram amigos. As mães costumavam preparar o almoço, o médico brincava com as crianças. Um dia, a jogar às escondidas, ele levou Kyle, então
Chelsea foi abusada aos 10 anos. Pediu à mãe para não contar a ninguém, com medo de prejudicar a carreira de ginasta. Suicidou-se aos 23
com 6 anos, para a sala das caldeiras e abusou sexualmente dela. Durante cinco anos a ginasta sofreu quase semanalmente esses abusos, até contar aos pais, que duvidaram da filha. Como era possível que o amigo da família e uma das personalidades mais reputadas no desporto norte-americano fosse capaz de uma atrocidade dessas? No julgamento, a mãe de Kyle chorou convulsivamente durante o testemunho da filha; o pai da ginasta suicidou-se em 2016.
“As ginastas são treinadas para aguentarem a dor, para não se queixarem e obedecerem, e ele utilizava essa cultura para executar estes abusos asquerosos. Uma vez, quando eu tinha 16 anos, introduziu os dedos sem luvas na minha vagina durante 30 minutos fazendo movimentos circulares. Ao acabar, agradeceu a confiança nele. Senti-me confusa e envergonhada. Pensava ‘É o Larry, não me faria nada de mal.’ Dessa vez era para as minhas dores nas costas, outra vez voltou ao tratamento especial durante 45 minutos para o que era suposto ser uma dor na perna. Aconteceu 20 vezes”, contou Chelsea Kroll perante a sala de audiências em estado de choque.
“Não conseguia perceber o que se passava de errado comigo, porque estava a lutar tanto, porque não tinha orgulho nos meus feitos. Tenho zero autoconfiança. Você é um demónio”, acusou Jamie Dantzscher, bronze nos Jogos de Sydney, em 2000, que travou batalhas contra a anorexia, a bulimia e uma depressão que a obrigou a estar internada por tentativa de suicídio.
“A Mattel deveria criar bonecas com os rostos de cada uma de vocês para que as meninas pudessem olhar para elas e dizer: ‘quero ser igual a ela’”, disse a juíza à ginasta Bailey Lorencen,
Precisamos de uma investigação independente ALY RAISMAN, GINASTA
em 2018 com 22 anos e abusos às mãos de Nassar desde os 8. “Nunca quis odiar ninguém na minha vida, mas o meu ódio por si é incontrolável. Trabalhei para lhe perdoar porque é o que Deus quer, mas por enquanto deixo isso com Ele”, afirmou.
A primeira vez que uma atleta se queixou de Lawrence Gerard Nassar, nome completo do criminoso, foi em 1994, mas como dois anos depois ele foi promovido a coordenador médico da equipa de ginástica dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Atlanta, o caso esmoreceu e ninguém quis acreditar. Em 1998 surgiram mais dois casos. Em 2000, foi Rachael Denhollander, então com 15 anos, a queixar-se de ter sido abusada no tratamento de um problema nas costas. Só 16 anos mais tarde, graças a uma investigação do jornal ‘The Indianapolis Star’ (ou ‘Indy Star’), que pela primeira vez denunciava abusos sexuais no mundo da ginástica nos Estados Unidos, é que veio a público uma catadupa de casos. Primeiro, o de Rachael Denhollander, que denunciou ao jornal os mais de 10 anos de abusos no ginásio onde Larry Nassar trabalhava em Michigan. Uma semana e meia depois, o advogado John Manly ligava ao jornal para dizer que representava a ex-olímpica Jamie Dantzscher e que ia pôr um processo por suspeitas de conduta do médico e pouco depois Jessica Howard, campeã nacional de ginástica rítmica, confessava que sofrera o mesmo. Foi o início de uma bola de neve que abalou a sociedade norte-americana e acabaria por dar início ao movimento #me too, de denúncia de assédio sexual, que teve repercussões sobre homens poderosos (nomeadamente em Hollywood), não só na América mas no mundo.
Na semana passada, diante do Senado dos EUA, a ginasta Aly Raisman falou como se olhasse para Nassar: “Estou aqui para que vejas que reconquistei a minha força, que não sou uma vítima, mas sim uma sobrevivente. Estou aqui para te dizer que não descansarei até que todos os mínimos vestígios da tua influência no desporto sejam destruídos. Se queremos acreditar numa mudança, devemos primeiro perceber o problema e tudo o que contribuiu para ele. Agora não é tempo de falsas garantias. Precisamos de uma investigação independente ao que realmente aconteceu, ao que correu mal e como isso pode ser evitado no futuro.”