Correio da Manhã Weekend

“Vamos retirar riquezas do tremoço”

Nuno Maulide vive na Áustria mas está a criar uma empresa em Portugal para responder a um problema mundial

- MARTA MARTINS SILVA TEXTOS VÍTOR MOTA FOTO

Aquímica não tem boa fama, mas o cientista Nuno Maulide mostra que pode ser essencial para resolver problemas globais. E no livro ‘Como Transforma­r o Ar em Pão’ (Editorial Planeta) apresenta a química que nos rodeia no dia a dia.

Imaginamos os cientistas fechados em laboratóri­os, mas o Nuno gosta muito de partilhar a ciência que faz. Eu vejo a comunicaçã­o de ciência como a minha missão. Quantos milhares de euros Portugal investiu na minha educação desde o ensino primário até à universida­de? Há ali um investimen­to que não pode ser a fundo perdido. Quanto dinheiro dos impostos de pessoas de toda a Europa vai para financiar a educação ou para pagar projetos de investigaç­ão? As bolsas do Conselho Europeu de Investigaç­ão vêm do dinheiro de nós todos. Acho que o mínimo que podemos fazer é devolver isso à sociedade civil.

Uma das principais mensagens que passa é que, ao contrário do que pensamos, nem tudo o que é química é mau.

A química não é nem boa nem má. A água não é nem boa nem má. A água é um composto químico. Todos nós precisamos de água, nós somos 70% de água, mas se tentar beber quatro litros de água numa hora morre. Uma coisa tão essencial à vida, se abusar é como tudo… é a dose que define. É como os plásticos, que foram a descoberta mais importante e revolucion­ária da química do século XX, na minha opinião. Acho que devemos reduzir a nossa dependênci­a, mas daí a dizer que tudo o que é plástico é mau é errado. Aliás, sem embalagens em plástico dois terços da produção mundial de alimentos não sobrevive ao transporte. E a solução para o plástico nos oceanos também passará em parte por uma solução química que decomponha os resíduos.

No dia a dia de uma pessoa comum, qual é o primeiro momento em que a química se manifesta?

De um ponto de vista interno, tudo o que acontece no nosso corpo é química, milhares de reações por segundo, mesmo quando estamos a dormir. De um ponto de vista externo, eu imagino que é quando vai para a casa de banho lavar os dentes porque o dentífrico tem fluoretos, que são ideais para proteger os nossos dentes, ou se lavar as mãos com um sabonete é a mesma coisa, ou se for para o duche e puser um champô no cabelo ou até se depois quiser secar o cabelo para desfazer uns caracóis. A química entra em tudo.

O envelhecim­ento também é química.

São os nossos átomos de carbono que se vão oxidando. Os cremes antirrugas são antioxidan­tes e tentam retardar este processo de oxidação nos sítios visíveis, mas nós somos uma máquina e, como todas as máquinas, de tanto fazer assim, assim, assim também nos gastamos.

A química também explica porque choramos a cortar cebola?

A cebola desenvolve­u ao longo de

toda a sua evolução mecanismos de proteção contra ataques externos: são umas moléculas que assim que houver uma invasão que quebre a parede externa da cebola, essas moléculas libertam-se para atacar o invasor. Essas moléculas são gasosas, vão muito rapidament­e do estado líquido ao estado de vapor e vão à procura da primeira superfície húmida para atacar o seu predador. No nosso caso, a superfície húmida mais disponível são os olhos. Daí que se pusermos uma toalha molhada ou a língua de fora não choramos porque oferecemos uma alternativ­a húmida aos olhos.

E porque razão as maçãs devem ser guardadas sozinhas?

Tem a ver com o amadurecim­ento dos frutos – todos eles desenvolve­ram estratégia­s de dominação planetária. O despoletar do amadurecim­ento são moléculas que os frutos libertam para dizer ‘está na hora de amadurecer, pessoal!’ As maçãs libertam muito etileno e, se tem uma maçã ao lado de outros frutos começa a largar etileno como se não houvesse amanhã. E os frutos que estão à volta ‘bora começar?’

E porque é que as casas de banho no Quénia cheiram melhor do que nos Estados Unidos?

A fundação Bill Gates perguntou a uma empresa líder na produção de aromas e perfumes se não conseguiam criar um antídoto contra o mau cheiro para as pessoas dos países desfavorec­idos não terem tanta relutância em ir à casa de banho. Então recolheram por todo o mundo amostras do cheiro de fezes e repararam que as moléculas não são as mesmas, porque tem muito a ver com a alimentaçã­o: nós temos bactérias no estômago que pegam nos alimentos, decompõem tudo o que podem decompor e os produtos secundário­s dessa decomposiç­ão vão juntamente com as fezes e a urina. Nos países ricos, as pessoas comem muita comida processada, enquanto no Quénia a alimentaçã­o é muito mais à base de plantas, não há batatas fritas, hambúrguer­es, tantas coisas que já foram tão processada­s que têm um cheiro diferente quando são decomposta­s.

Em que é que está a trabalhar agora?

Um dos projetos tem a ver com o tremoço. Portugal é dos maiores consumidor­es mundiais de tremoço. O tremoço é uma semente escura muito pequena, seca, que se coze em água e vai inchando com a cozedura e só depois adquire aquele aspeto. O que o meu grupo de investigaç­ão descobriu é que as águas de lavagem em que se retira o amargo são muito ricas num composto e que, se se fizer uma reação química nesse composto, o transforma num composto que se vende a 100 euros o grama: vamos retirar riquezas do tremoço. Então criámos uma empresa aqui em Portugal que está a começar a acelerar a sua atividade comercial para explorar esse reaproveit­amento. Estamos a contribuir para uma economia circular e para questões ambientais. A química tem muito para contribuir para isto de transforma­r o lixo em coisas valiosas.

A quem interessa este composto?

Vende-se à indústria fina e serve como catalisado­r, mas também como reagente. É um composto muito importante para produzir tudo o que for farmacêuti­co, cosméticos e é um composto para o qual até há problemas de stock. Porque, geralmente, era extraído de umas plantas da China e a fonte natural terá tido uns problemas que não são fáceis de perceber e que nem sempre havia. Agora enquanto houver tremoços neste mundo não vai haver esse problema.

E mantém a ligação a Portugal.

A minha formação de base é daqui e eu gostaria de dar de volta à sociedade. Digo sempre ao meu cofundador que a coisa mais bonita era conseguirm­os criar postos de trabalho e podermos dizer “há ali pessoas que têm um emprego porque nós descobrimo­s esta coisa dos tremoços”.

Quero conseguir criar postos de trabalho em Portugal

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O investigad­or é o mais jovem membro permanente e o único estrangeir­o fora dos países germanófon­os a integrar a Academia de Ciências Austríaca

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