Correio da Manhã Weekend

“Terra que mana leite e mel” (Êxodo 33:3)

- EDUARDO CINTRA TORRES ectorres@cmjornal.pt TEXTOS ESCRITOS COM A ANTIGA GRAFIA

Desde há anos, por esta altura, reacende-se o vulcão cuspindo lava de propaganda sobre os media amigos ou incautos: dos gabinetes governamen­tais, dos seus assessores e suas agências de desinforma­ção saem dicas avulsas sobre maravilhas do próximo orçamento, ainda desconheci­do dos media, dos deputados, de todos nós. Jorram bíblicas promessas de leite e mel, escorrendo sobre “as famílias”, entidade mítica de que sempre falam para compensar os números ácidos do orçamento e para encantar jornalista­s, como os da TV que ainda imaginam falar para “toda a família” reunida “aí em casa” em frente dum televisor a preto e branco.

Durante uns dias, enquanto mais ninguém conhece a letra miúda do orçamento, o governo tem a iniciativa e o poder total sobre a informação a divulgar. Os media deveriam ser prudentes no tratamento dessas dicas iniciais, leite e mel que não se podem contradita­r por outros dados do mesmo orçamento, pela análise de jornalista­s, especialis­tas e entidades políticas e económicas. Alguns media não têm esse cuidado.

Uma ou outra manchete em jornais e TVs roçaram a pornografi­a propagandí­stica. O Diário de Notícias (DN), por exemplo, mais do que a Pravda do governo Costa, pareceu a sua Komsomolsk­aia Pravda: a Pravda dos pequenitos. Na terça-feira a manchete mostrava moedas de euro caindo sobre o leitor. Diziam letras vermelhas de tamanho Godzilla: “700M€” de “reforço do serviço nacional de saúde”; e diziam letras vermelhas de tamanho Tirannosau­rus Rex: “alívio no IRS para classe média”. As 75 palavras do pós-título pareciam escritas no gabinete do ministro das Finanças. João Leão: eis, esta semana, o herói do DN. Já na segunda-feira mostrava Leão, poderoso, frontal, prometendo “menos impostos para famílias” — lá está, as “famílias”. E na manchete de ontem o ministro apareceu rodeado de um sol imenso, sem poupanças no amarelo e nos raios que lhe rodeavam a cara e a careca. Em baixo, aos pés de Leão, lá estava em desenho uma “família”, sim, a mítica “família” que desiberna com a chegada anual do orçamento. Ei-la, num utópico campo de florinhas, olhando em frente, para o futuro, para o sol, ei-la, “pai”, “mãe” e os dois

“filhos”, um deles às cavalitas elevando os braços para o céu, dando graças ao ministro-sol. O jornal representa­va a “família” ideal sob o regaço protector do gigante ministro Leão, o sol que brilhará para todos nós, todas as “famílias”. Estudei o Notícias Ilustrado dos anos 20 e 30, a revista do DN que criou o mito visual de Salazar — e nunca ali vi mitificaçã­o tão canhestra como a destoutro ministro das Finanças na manchete de ontem do DN.n

ENQUANTO NINGUÉM CONHECE A LETRA

MIÚDA DO ORÇAMENTO

O GOVERNO TEM O PODER TOTAL SOBRE

A INFORMAÇÃO

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal