Correio da Manhã Weekend

AS CRIADAS DE SERVIR

Era assim que se vivia. Por isso espero que ninguém me venha dizer que ‘dantes’ era melhor do que hoje

- POR MARIA FILOMENA MÓNICA

Por tu galé um dos países europeus com mais` empregadas domésticas ', apalavra agora usada para falar do que costumávam­os designar como` criadas de servir '. Neste artigo, usarei o segundo termo porque, embora existam algumas diferenças, o essencial mantém-se. Trata-se, ainda e sempre, de mulheres (em Portugal apenas 2,5% são homens) recrutadas por gente com dinheiro suficiente para se ver liberta do trabalho doméstico.

Segundo o documento ‘Tornar o Trabalho Decente uma Realidade para os Trabalhado­res Domésticos’, recentemen­te divulgado pela Organizaçã­o Internacio­nal de Trabalho (OIT), Portugal é um dos países com um maior número de criadas: representa­m 2,2% dos trabalhado­res em geral, uma percentage­m só ultrapassa­da por Itália e por Espanha (3,3%). É verdade que apesar de, em teoria, usufruírem de alguma proteção legal, nem sempre os patrões e as assalariad­as disso estão consciente­s.

A OIT mostra que, em Portugal, 36% são pagas abaixo do salário mínimo e que a maioria trabalha mais horas por semana do que a lei prescreve (44 horas). Tudo isto é agravado no caso das criadas internas, uma vez que se admite que, por usufruírem do ‘privilégio’ de terem comida e cama onde dormir, teriam de estar prontas para o trabalho a qualquer hora do dia ou da noite. Recordo nitidament­e como era o seu quotidiano pelo menos até 1962, data em que deixei o lar paterno.

Na nossa casa, as criadas eram geralmente recrutadas através do pároco da aldeia do meu avô. Algumas chegavam ainda crianças. A minha mãe, comigo sempre tão dominadora, era diferente no caso delas. Embora exigente, protegia-as sempre que elas se defrontava­m com alguma aflição. Tudo mudou nas últimas décadas, mas devemos recordar este passado. Por vezes, menciono-o às minhas netas: elas ficam sobretudo espantadas com a existência de uma espécie de ‘apartheid’ entre os senhores e as criadas. Estas entravam e saíam pela porta de serviço, não usavam a nossa casa de banho e tinham de comer na cozinha. Sabia, por amigos – então não tinha irmãos adolescent­es ser frequente os ‘meninos’ da casa terem relações sexuais com elas, o que aparenteme­nte toda a gente considerav­a normal. O ‘Me Too’ está na moda, mas ninguém recorda já as violações a que estas raparigas foram sujeitas.

Na minha família, que pertencia à classe média-alta, havia duas criadas: a de fora, que servia à mesa, e a de dentro, que cozinhava. A certa altura, a minha mãe contratou uma governanta, a Vitória, cuja função era destinar as refeições e verificar se o nosso vestuário estava engomado a rigor. Ela provinha de um estrato superior ao das criadas, o que fazia com que pudesse sentar-se à nossa mesa. Era assim que se vivia. Por isso espero que ninguém me venha dizer que ‘dantes’ era melhor do que hoje.

“Havia uma espécie de ‘apartheid’ entre os senhores e as criadas. Estas entravam pela porta de serviço, não usavam a nossa casa de banho e comiam na cozinha” Ninguém recorda já as violações a que foram sujeitas

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