Correio da Manhã Weekend

Querida mãe, nós não podemos fugir ao destino

MANUEL, FILHO ÚNICO E MUITO APEGADO À MÃE, SOFREU COM A AUSÊNCIA E A DISTÂNCIA DAQUELA QUE O GEROU E CRIOU ATÉ IR PARA A TROPA. OS DOIS TROCAVAM MUITAS CARTAS SENTIDAS

- POR MARTA MARTINS SILVA, JORNALISTA, AUTORA DE `MADRINHAS DE GUERRA' E `CARTAS DE AMOR E DE DOR'

“Ainda não houve troca de tiros (...) Ao dizer a palavra mãe eu sinto muitas saudades suas”

Fortim do Dange, Matas dos Dembos, Norte de Angola,

fevereiro de 1974. Querida mãe, cá o seu filho Manel pensou escrever esta simples carta, para ver se lhe dá força e coragem para não andar a sofrer com a minha ausência, pois não resolve nada com tal tormento e sofrimento, alegre-se mãe, por ter dado um filho para defender a nossa pátria. Olhe mãe, a respeito à guerra? Não ande incomodada e preocupada, nós não podemos fugir ao destino, o que tiver que acontecer acontece, não ligue ao que ouve, só lhe tenho a dizer que, da guerra é melhor não falarmos, é o deixa andar, os minutos, as horas, os dias, as semanas e os meses, sabe? O tempo que passe depressa”, contava Manuel Lopes à mãe, ele que tinha chegado a Angola a 2 de dezembro do ano anterior. Despedir-se da mulher que o gerara foi a mais difícil dor que enfrentou na partida.

Vida nas matas

“A minha vida aqui é passada nas matas, mas, mãe, não fique a pensar que ando pelas matas como eu fazia em garoto aí com você à lenha para o lume. Mãe, conhece-me como ninguém, eu falo assim é para rirmos, valha-nos isso. Desde que estou aqui destacado com os meus colegas amigos, neste monte Fortim do Dange que parece um inferno, calor e mais calor, chuva e trovoada com fartura e em nosso redor só avistamos mata e mais mata, vivemos aqui com a companhia dos amigos macacos e de vez em quando temos visitas de pacaças e veados. Ainda não houve troca de tiros entre nós e os turras, por esse motivo andamos satisfeito­s, nós vimo-los ao longe, mas eles, assim como nós, têm amor à vida. Mãe, vou terminar esta carta, com os meus olhos rasos de lágrimas, pois, ao dizer a palavra mãe sinto muitas saudades suas, mas, querida mãe, peço perdão e desculpe, mas tenho que desabafar, infelizmen­te é verdade, pois, já não me recordo do seu rosto e da sua voz.”

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Quando foi para a guerra, Manuel levou um terço que a mãe lhe deu antes de partir
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