Correio da Manhã Weekend

E as crianças?

- TEXTO ESCRITO COM A ANTIGA GRAFIA VICTOR BANDARRA,

Ficam gravadas na retina os olhares das crianças que convivemco­ma guerra e a violência. Beirute Ocidental ,1982. No meio dos prédios em ruínas, um miúdo dos seus 7/8 anos brinca com um arco. Leva uma espingarda de madeira a tiracolo. Há tiros esporádico­s ali perto. Não se encolhe nem desata a fugir. Abriga-se atrás de um destroço. Está habituado. Batalha do Cuito-Cuanavale, Angola, 1987. Um grupo de crianças vive há meses num bunker junto a uma pista destruída. O exército sul-africano do apartheid ataca diariament­e as FAPLA com tiros de canhões G-5, disparados a 25 km de distância. O stresse dos adultos aumenta quando se escuta o silvo do disparo, ao longe. É hora de correr para o bunker, o obus pode cair ali segundos depois. As crianças, caras fechadas, olhos brilhantes, ficam atentas. Já viram morrer pessoas. Estão habituadas. Kinshasa, Zaire (Congo), 1992. Soldados amotinados do Presidente Mobutu tomam as ruas, disparam à toa, fazem barreiras de controlo. Estão embriagado­s. Mandam parar toda a gente. Não têm pejo em entregar a metralhado­ra a uma criança, que aponta para o condutor branco. O miúdo ri-se. O forasteiro tenta sorrir, esconder o medo. A criança, dedo no gatilho, solta uma gargalhada. Está habituada aos tiros e à violência. Chimoio, Moçambique, 1993. Um miúdo dos seus 12 anos, faca afiada atada com um cordel à cintura, vigia dezenas de homens que apanham laranjas. Brinca a empurrar um carrinho de arame. É um dos miúdos treinados na guerrilha pela Renamo. Se o chefe o mandar matar alguém mais mandrião, ele mata. Está habituado. Garante a Psiquiatri­a que 90% das crianças agredidas e violentada­s na infância têm probabilid­ades de se tornarem agressoras. Nas entranhas da fábrica Azovstal, Mariupol, Ucrânia, centenas de crianças habituam-se à guerra nos bunkers que são o seu refúgio há semanas. Sabe-se lá o que sentem e o que viram. Quando as crianças se habituam à guerra e à violência, o futuro dos países e da Humanidade torna-se sombrio.

“Quando as crianças se habituam à guerra e à violência…”

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