O dilema do inverdadeiro
Oque é uma “inverdade”? Um linguista picuinhas poderia explicar como a palavra “mentira” se transformou numa espécie de “não verdade” onde o prefixo “in” significa negação. Nos diários do parlamento, nos registos de debates televisivos, em diálogos muito cumprimenteiros, a palavra repete-se aqui e ali com um rasto de indignação: “V. Exa. sabe perfeitamente que se trata de uma inverdade.” Noutros tempos alguém bradaria com um ruidoso ponto de exclamação: “V. Exa. acaba de largar uma refinadíssima mentira!” E puxava da pistola. Mas isso, que valia nas bancadas do constitucionalismo e da I República, entrou já na lista das deselegâncias puníveis por lei. Hoje em dia ninguém está para chamar mentiroso ao orador que o antecedeu, o que não significa que a mentira esteja fora de moda, substituída pela expressão “notícias falsas”, que – toda a gente sabe – em português se pronuncia ‘fake news’. Mas “inverdade” é uma treta; nem sequer é ‘fake news’.
O argumento a favor do uso da “inverdade” é que nem tudo é a preto e branco – e há, portanto, graus de mentira. Pode ser. Mas creio que a ideia não é essa, e sim limpar o português de tudo o que possa ser ofensivo ou menos amável. O resultado: uma língua pasteurizada, inofensiva, própria para todas as circunstâncias, boa para não causar melindre. Uma coisa é a esposa furiosa chamar mentiroso ao marido; outra é ela murmurar ao ouvido do cônjuge: “Sim, amorzinho, és tão inverdadeiro...” Sabemos que o sacaninha mentiu prodigiosamente – mas não vamos agora traumatizá-lo chamando-lhe mentiroso. Por exemplo, sempre que fala na televisão um daqueles militares que falharam todas as suas previsões putinistas sobre a agressão à Ucrânia, não vamos chamar-lhe pantomineiro, falaz, farsante, patarata, sicofanta, embusteiro, mendaz, ardiloso, velhaco, manhoso, pérfido, intrujão ou falinhas-mansas – que ele não é. Inverdadeiro basta.
“O sacaninha mentiu, mas não vamos agora traumatizá-lo”