“Quando saíamos para o mato, o medo ficava na cama”
TODOS OS DIAS ERAM UM JOGO DE SORTE E DE AZAR. HOUVE DOIS DIAS FATÍDICOS NA NOSSA COMISSÃO, QUANDO PERDEMOS O CABO BIDARRA, O SOLDADO SOUSA E O CABO ENFERMEIRO BAPTISTA
Dez dias depois de embar- carmos em Lisboa e após
uma viagem algo atribu- lada no navio ‘Niassa’, chegámos a Luanda a 1 de novembro, dia de To- dos os Santos. A ‘manga’ que arejava os porões onde seguia a maioria dos soldados colou e a circu- lação de ar não se fazia. A temperatura subiu muito e o enjoo disparou. Era qua- se impossível viver nes- tas condições. Quem teve forças, de colchão às cos- tas veio para os deques do navio. Ficaram os mais débeis. Estes, era preciso alimentá-los. Valia-nos o ‘Cerimalte’ para este fim, e duas vezes por dia, des- cia ao porão, de garrafão às costas, funil na mão, com todo o cuidado, evi- tando escorregar no mar de vomitado que era o chão e, enfiando o funil na boca dos desgraçados, obrigava-os a engolir algum deste alimento.
Pensar na morte
Quando pensava na morte os suores frios apareciam. Todos os dias íamos jogar na roleta-russa, podia-nos calhar o azar. Os perigos eram tantos e em tantas situações. Durante meses passámos sobre duas minas anticarro, no Morro do Mata Bicho. Eram engenhos muito po- tentes, por sorte tinham sido mal montados e só uma máquina que abria uma nova estrada as levantou para alívio e espan- to de todos nós. A terem explodido, atirariam fa- cilmente com uma viatura ao ar. Valia-nos que quando saíamos para o mato, o medo ficava na cama.
O 13 de setembro e o 29 de julho foram dias fatídicos. A 13, o cabo Bidarra e o soldado Sousa encontraram a morte no morro do Mata Bicho, na zona no Quimbele. A 29 de julho, o meu cabo enfermeiro Baptista foi morto junto à Pedra Verde, quando já estávamos na Mussenga, junto ao Ucua. Ambos os ataques foram feitos através de emboscadas. O primeiro por um grupo, o segundo por um atirador isolado. No primeiro ataque, no morro do Mata Bicho, a viatura de reabastecimento, ao sair de uma curva, numa saída acentuada, ficou sob fogo cruzado e sem proteção. Na Pedra Verde era um pequeno grupo de combate que fazia uma patrulha de rotina. A notícia chegou de madrugada.
“Foi o Baptista, o teu cabo.” Quase desmaiei, tinha perdido um dos meus homens! Também eu tinha sido atingido! Traziam-no pendurado num pau, de pés e mãos atados. Senti vontade de me embrenhar na mata e matar todos os inimigos. Vingar aquela morte. Para além de ser um dos meus homens, era o único casado e já com um filho. Dos mortos também reza a história...