Correio da Manhã Weekend

A encantador­a senhora Paulina Chiziane

ELA LÊ TUDO – PASSADO, PRESENTE E FUTURO – COMO SE FOSSEM UM SÓ, COMO SE ESTIVESSEM A ACONTECER NESTE MOMENTO, ATÉ PORQUE ESTÃO MESMO A ACONTECER NESTE MOMENTO

- RUI ZINK, ESCRITOR E PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

O Prémio Camões, o Nobel da língua portuguesa, foi atribuído em 2021 pela primeira vez a uma escritora moçambican­a. Eu já conhecia e era fã, por isso fiquei duplamente contente

TÍTULO `Ventos do Apocalipse' AUTOR Paulina Chiziane EDITORA Caminho “Passámos do riso ao abraço que nem Ferrari dos zero aos cem”

“Em todas as guerras do mundo nunca houve arma mais fulminante que a mulher”, explica Paulina Chiziane em ‘Ventos do Apocalipse’, um romance com 30 anos mas agora reeditado pela quarta vez, graças ao Prémio Camões, o Nobel da língua portuguesa, atribuído em 2021 pela primeira vez a uma escritora moçambican­a. Eu já conhecia e era fã, por isso fiquei duplamente contente. E onde a tinha conhecido? Ora, no festival Correntes d’Escritas. Entrosámos logo. Passámos do riso ao abraço que nem Ferrari dos zero aos cem.

Nestas coisas de encontros de escritores, quando tropeçamos uns nos outros em festivais somos como os cães: farejamo-nos o rabo. Esse momento narigal diz muito sobre quem é o outro que está ali à nossa frente, sorridente, e se, fingindo simpatia, está planeando surripiar-nos o Nobel. O estribilho de que nunca devemos conhecer os escritores cujos livros amamos não é inteiramen­te verdade. Desde logo, os escritores não ‘nos desiludem’, nós é que podemos desiludir-nos com eles. O escritor mais encantador do mundo será talvez insuportáv­el para alguém, da mesma forma que o escritor mais execrável do mundo terá pelo menos um par de amigos, quiçá até família.

O que é raro suceder, isso sim, é uma coincidênc­ia de tom e estilo entre a pessoa e os livros. Oscar Wilde, o autor mais citável de sempre até vir o maroto do Borges roubar-lhe o pódio, dizia que os autores de tragédias tendem a ser nutridos e bem-dispostos; em contrapart­ida, os de comédias seriam mais a dar para o magro e neurasténi­co. Tem, como

tudo o que disse o bom Óscar, um fundo de bom senso. Sim, muita melancolia se esconde atrás da comédia. E muita alegria têm os autores de tragédias, sobretudo porque estas vendem melhor. Mas autores há, raros, que são sempre inteiros. E os mesmos sempre, dentro e fora do livro.

Com muitas histórias dentro

A espantosa Paulina Chiziane é uma daquelas pessoas que trazem muitas histórias dentro e, quando as ouvimos falar, vemos que também trazem muitas histórias no corpo. Escrevem e falam e são e, nisso tudo que escrevem e falam e são, estão totais. A senhora Paulina Chiziane é uma mulher inteira. Uma escritora que nos puxa com uma só mão, agarrada ao nosso colarinho, dos estribos do cavalo das nossas Boas Intenções. É uma força da natureza, a senhora Chiziane. Creio que a isso se chama génio.

De onde vêm as suas histórias, as muitas histórias que entrelaça e interliga nos romances? Boa pergunta. Eu tenho o meu palpite: de qualquer coisa de profundo, de antigo, de imediato. Do seu povo, das suas raízes, e também dos conflitos internos da própria Paulina Chiziane. E também do facto, nada singelo, de ser mulher. Os antigos romanos liam o futuro nas entranhas. Chiziane lê tudo – passado, presente e futuro – como se fossem um só, como se estivessem a acontecer neste momento, até porque estão mesmo a acontecer neste momento. Os tempos todos, ancestrais e futuros, estão a acontecer neste momento. Os Ventos do Apocalipse também.

“As histórias que entrelaça vêm do seu povo, das suas raízes”

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal