Natálias versos Morgados
No tempo em que deputadas eram aves raras, Natália Correia (1923-1993) pertencia à espécie. A sua voz capaz de emudecer Pavarotti condizia com o facto de ser poeta e destemida. Foi em novembro de 1982, no primeiro debate parlamentar sobre a interrupção voluntária da gravidez, depois de João Morgado, deputado do CDS, ter dito que “o ato sexual é para fazer filhos”, ao que Natália respondeu: “Já que o coito, diz Morgado,/ tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca,/ sendo pai só de um rebento,/ lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou - parca ração! -/ uma vez.”
Natália Correia impunha respeito. Fui ao Botequim entrevistá-la depois da estreia da peça ‘A Pécora’, pela Comuna, ainda estudante e, apesar do facto, recebeu-me. Plantei-me à espera dela no bar do Largo da Graça, empolgada por ir conhecer a autora do texto cuja encenação em 1989 me tinha deixado de cara à banda, sem saber que à partida estava condenada por ter acedido a levar comigo um colega predisposto à sabujice e que lhe disse, espadachim que saca da espada, ter-me obrigado a levá-lo por a querer muito conhecer. Na minha cabeça, Natália ter-lhe-á respondido no mesmo tom que ao Morgado: “Pois fique sabendo, meu rapaz, que às mulheres ninguém obriga a nada.” Ainda não é bem assim. O populismo, o fanatismo religioso e a pseudomoral validam o discurso sexista, a manutenção das desigualdades sociais e a violência - e não é preciso irmos a Cabul.
Neste maio foi divulgado um projeto do Supremo Tribunal Federal dos EUA que inclui uma opinião maioritária - republicana, masculina e empoderada por Trump - para revogar a decisão de 1973, que garantia o direito à interrupção da gravidez até cerca de 23 semanas de gestação. E logo aqui se ergueram os morgados.
“Plantei-me à espera dela no bar do
Largo da Graça, empolgada...”