A beleza controversa
Por pura gentileza de cavalheiro, Eça nunca chegou a publicar a carta em que chamava burro a Camilo – mas ela existe e é maravilhosa. Gosto tanto de Camilo que gosto da carta de Eça. Seja como for, esta semana regressei a um site que se entretém a compor uma lista de escritores que “nunca mais devem ser lidos” depois de conhecidas as indignidades cometidas por cada um deles; de Victor Hugo a Isaac Asimov, de J.K. Rowling a Mark Twain ou a Tolstói, de Philip Roth a Flaubert (e Wilde!, que era “cruel”), de Camilo José Cela a Norman Mailer, há “ofensas” para todos os gostos: uma palavrinha, uma ideia ao pequeno-almoço, um deslize (Mailer tinha a mania de querer assassinar pessoas, mas é um exagero) – tudo serve para demonstrar que, no futuro, vamos ser bonzinhos como uma melancia, higienizados como um teste de Covid, tudo sem polémicas nem atritos. Só Júlio Dinis nunca cometeu pecados, mas caramba, não se pode passar a vida inteira a ler as ‘Pupilas do Senhor Reitor’.
Leremos ‘Os Maias’ sem mencionar Eça, porque ele era “racista”; deixaremos de assistir a uma representação de ‘O Misantropo’ sem o nome de Molière, o autor, porque ele era soez; deixaremos de ler ‘Orgulho e Preconceito’, porque Jane Austen era conservadora; será um mundo sem dificuldades nem discussões, nem dúvidas, nem contrariedades. Mozart era tolinho, a música de Bach servia os interesses do império, Diego Velázquez falsificou o seu passado, Gauguin gostava de jovens mulheres, finalmente Jesus Cristo (segundo alguns evangelhos apócrifos) nunca esclareceu a sua relação com Maria Madalena. Nenhum deles deve ser frequentado, lido, escutado – ou os seus quadros apreciados. Seremos, doravante, seres equilibrados em pontas, incapazes de rir de uma piada. Está em curso uma gigantesca operação policial destinada a verificar como nos relacionamos com o passado e, finalmente, a polir o próprio passado da sua beleza controversa.
“Equilibrados em pontas, incapazes de rir de uma piada”