Correio da Manhã Weekend

A Caritas Romana nas Marchas de Lisboa

- EDUARDO CINTRA TORRES ectorres@cmjornal.pt TEXTOS ESCRITOS COM A ANTIGA GRAFIA

Ofoto-repórter António Cotrim, da Lusa, fez esta foto extraordin­ária na noite de 12 de Junho. Um homem, que reconhecem­os, beija ostensivam­ente o ventre de uma grávida de muitos meses. Não a vemos. Cotrim enquadrou um plano médio, centrado absolutame­nte no gesto de Marcelo e no gesto dela, com a mão na cabeça do homem que lhe beija o ventre. A delicadeza do gesto da mão correspond­e ao gesto do homem. O enquadrame­nto não deixa perceber o contexto. Quando e onde? A Lusa não disseminou aos seus clientes a foto do seu foto-repórter de há décadas; fê-lo ele mesmo, no Facebook. Muitos duvidaram da veracidade. Será montagem, será fake? Porque apareceu uma foto tão impactante na rede social e não no serviço da Lusa?

O fotógrafo teve consciênci­a da pepita de ouro que ali tinha e colocou-a online, a preto e branco, talvez para a distinguir do original a cores caso tivesse sido divulgada pela agência. Só depois do impacto no Facebook e nas redacções a Lusa a pôs à venda, mas em separado, em vez de no serviço normal. Tudo bizarro, acrescenta­ndo à aura da imagem.

O que faz esta foto única é o gesto e quem o fez. É invulgar um homem, sem relação familiar, beijar uma barriga grávida em público. E um chefe de Estado? Será certamente a primeira vez que acontece desde que os há, desde Nabucodono­sor na Babilónia e faraós no Egipto. Há três reacções à singularid­ade do gesto de Marcelo. Primeira, a política: fê-la o próprio Cotrim no Facebook, quando, sem indicar lugar da foto (Marchas de Lisboa), escreveu: “Com tantas Urgências de Obstetríci­a a encerrarem todo o afecto é necessário.” Iconólatra, o presidente teria assim enviado uma mensagem por imagem aos cidadãos sobre o miserável desgoverno do SNS. Segunda, a análise protocolar, em choque: um presidente não faz isto, abandalha a gravitas da chefia do Estado! Terceiro, a análise que falta: num impulso próprio do seu forte carácter infantil, traço dos mais inteligent­es adultos, o presidente fez apenas o que achou bonito.

Pode ser que fosse também um gesto político, mas duvido. Marcelo não só gosta de crianças, como é em boa medida criança. Resultou a fotografia extraordin­ária, que segue na linha da milenar história ou lenda romana de Pero, a filha que amamentou o próprio pai, Simon, para ele sobreviver na prisão, pondo a vida e a relação familiar acima da lei social transgredi­da. O cristianis­mo absorveu a lenda e chamou-lhe Caritas Romana. Muitas pinturas a representa­m. Marcelo transgredi­u o protocolo dos faraós, reis e presidente­s e possibilit­ou a imagem duma relação com a maternidad­e que remete para a mais visceral humanidade.n

MARCELO TRANSGREDI­U

O PROTOCOLO DOS FARAÓS, REIS E PRESIDENTE­S

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