Investigar a censura nas democracias
ABiblioteca Nacional (BN) apresenta uma interessante exposição em que os comentários e recomendações dos censores do Estado Novo são expostos ao lado dos exemplares dos livros que lhes passaram pelas mãos. Se um livro era censurado, além de se privar o público, os exemplares tinham de ser retirados do circuito de venda, com prejuízos financeiros para autores, editores e livreiros. São agora expostos pela primeira vez exemplares em que os censores aplicaram, literalmente, o lápis azul: de Vergílio Ferreira, Teixeira Gomes, Maria Lamas, Torga, Pascoaes, Aquilino e muitos outros, portugueses e estrangeiros. A censura a livros era então a posteriori, depois de publicados. Decerto inspirou a censura que o ex-deputado Magalhães (PCP—> PS) fez aprovar na anterior legislatura.
Percorri a exposição na BN no mesmo dia em que ali consultei o ‘Primeiro de Janeiro’ de 1916. A censura via-se: no diário portuense, como em todos, as partes censuradas foram durante décadas retiradas da página, ficando os espaços em branco. Esta censura ocorria em plena 1ª República, a coberto de evitar informações sensíveis sobre a Guerra na Europa (hoje os Magalhães do lápis azul invocam as ‘fake news’). O regime do 5 de Outubro, entre 1910 e 1926, teve períodos de feroz censura à imprensa, como o Estado Novo. Escrevia ‘O Século’ em 1916: a censura estava “cortando os simples comentários políticos ou de crítica social, sem nenhum carácter de informação” sobre a guerra. “Os jornais só podem dizer o que politicamente lhe [ao governo] convém”. O colunista Guedes de Oliveira queixava-se da censura, que também o atingia e condenava o “excesso de zelo” da comissão de censura da República, que lhe cortava artigos em que ele “não disse uma palavra, uma só”, sobre o conflito europeu. Era apenas censura prévia à livre opinião.
Julgo que já faz falta a Biblioteca Nacional e os investigadores da história da imprensa trabalharem sistematicamente o estudo da censura em regimes que se reivindicaram ou reivindicam democráticos. É um grande ensinamento para os tempos de hoje. À parte a leve censura na Monarquia (já estudada), é preciso investigá-la na 1ª República; e também na actual República: forte no PREC (feita em parte pela 5ª Divisão do MFA), pontual depois (programas censurados na RTP), forte outra vez no socratinismo, com afloramentos no novo costismo, de que é exemplo a lei da tesoura do deputado Magalhães. Cito de novo Guedes de Oliveira: “que a censura, que bem deve conhecer as lições da História, se lembre de que explorado, conspurcado e calado, não há povo nenhum que por muito tempo viva.”n
“QUE A CENSURA
SE LEMBRE
DE QUE EXPLORADO E CALADO, NÃO HÁ POVO QUE POR MUITO
TEMPO VIVA”