Relações de trabalho
Num jantar entre amigos, a minha afilhada, com uns espertos 16 anos e inteligentemente à vontade entre adultos, esteve satisfeita ao cubo, como qualquer um na adolescência, por demonstrar que aprender determinadas coisas a partir de certa idade torna-se difícil, mesmo que se esteja, como é o caso, longe da aposentadoria. Explicava ela aos nabos como se fosse física quântica a diferença entre binário e não binário, coisa afinal simples. Oh, diabo, sou o quê?, gargalhávamos, infantis, na descoberta sem procurarmos aprofundar até quando estava a medida da sinceridade.
A minha geração começou sem computadores e ‘política de cancelamento’, expressão que só pode ser eufemismo comparável àquele das ‘casas de génese ilegal’ que bordejavam caminhos à entrada de Lisboa, abrigando mal e às pressas aqueles que retornavam de África.
Lembrei-me do episódio do jantar quando, por um destes dias, Marx desceu à terra e transvestido apresentou-se no palco do São Luiz para se insurgir contra a ditadura do proletariado que o obrigava a atos sexuais para ganhar a
“Marx desceu à terra e transvestido apresentou-se no São Luiz”
vida em vez de a ganhar (provavelmente com um salário da treta) a fazer o papel dele mesmo, ou seja do transexual da peça. Keila Brasil reclamava da falta de oportunidades de trabalho para os ‘trans’ em Portugal e de uma forma geral para todos os outros, dizemos nós.
Depois do discurso político, a companhia assumiu a falha e substituiu o ator cisgénero (não trans), que representava a personagem trans ‘Lola’, pela atriz trans Maria João Vaz – e o afastado já veio a público dizer que se sente discriminado no faz de conta que é ser ator. ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’, um belíssimo filme de Almodóvar, adaptado ao teatro por Samuel Adamson, continua a carreira com as sessões esgotadas.
Depois de reposta a hipocrisia entre partidários do politicamente correto e aqueles que o estraçalham, palpita-nos que a única que não mudou de vida foi Keila Brasil.