Entre a guerra e a catástrofe
Na Ucrânia, na Turquia, na Síria e em tantos outros países, a morte passeia pelas ruas e entra nos prédios. Na Ucrânia foi convidada por seres alegadamente racionais que não compreendem que qualquer momento de guerra é um momento a mais. Na Turquia e na Síria as explicações variam entre o acaso e o destino, com a cobertura da superstição ou da Ciência. Porém, a coincidência temporal destes fenómenos suscita uma dúvida complexa. Sendo os recursos de socorro escassos, mesmo à escala planetária, qual deverá ser a prioridade? Socorrer as vítimas da guerra ou do terramoto?
Na verdade, só o cessar-fogo (como primeiro passo de um roteiro urgente para a paz) nos isentaria deste dilema angustiante. Na demonstração por absurdo da profunda imoralidade do recurso à violência, deparo-me com outra pergunta. A guerra continuaria na Ucrânia se lá ocorresse uma catástrofe natural? Os combatentes transmutar-se-iam miraculosamente em bombeiros ou agradeceriam a Deus e à mãe natureza por lhes terem propiciado o resultado apocalítico projetado sem necessidade de intercessão humana? Interromperiam as hostilidades para depois as retomarem com pleno vigor?
No entanto, há imagens tão fortes que nos deveriam ensinar a responder sem hesitações a estas perguntas embaraçosas. Como a daquela menina síria, recém-nascida, que foi separada da mãe, já morta, entre os escombros, pelo corte do cordão umbilical. Ou a de uma anciã ucraniana, de olhos ressequidos, que disse e redisse que só queria a paz. As explicações sobre geoestratégia e blocos político-militares são uma resposta obscena a estes seres humanos, que sofrem sem saberem porquê ou para quê, numa corrida demencial para um abismo que já não é abismo só em sentido figurado.
No discurso político continua a insistir-se na inviabilidade de um cessar-fogo e da abertura A guerra continuaria na Ucrânia se lá ocorresse uma catástrofe natural? de um processo e negociações. Esta perspetiva é inaceitável. Precisamos de menos comentadores resignados e de mais homens e mulheres de boa vontade que não desistam de fazer tudo o que está ao seu alcance, ou seja, mais do que parece estar ao seu alcance, para conseguir a difícil paz. Foi esta a atitude nobre e incansável de Gandhi e de Mandela, mas não de políticos que por dolo ou negligência insistem em não compreender que a paz é um direito natural das pessoas e dos povos.