Salman Rushdie
UMA FACA PROMETIDA
Salman Rushdie vem a Portugal em setembro e este mês sai `Faca', o livro em que recorda como foi assassinado mas não morreu
Praticamente todos os seus livros “estão envolvidos em polémica” – isto é uma condição essencial para um grande escritor, e Salman Rushdie confirma a regra. `Filhos da Meia-Noite' (de 1981) ganhou o cobiçado Booker, um dos mais prestigiados prémios literários de língua inglesa, mas foi amplamente criticado na Índia pelas acusações que deixa aqui e ali sobre o clã Gandhi. É um romance extraordinário, acompanhando a vida de Saleem Sinai, calvo e surdo, que nasceu à primeira hora da independência da Índia, em 1947 (ele conta a história da sua geração ao grande amor da sua vida, Padma Mangrol) – e pode dizer-se que é um romance que lembra o “realismo mágico” latino-americano, cheio de humor (muito) e poesia, de personagens fantásticos e de situações mirabolantes. Segue-se `Vergonha' (de 1983), que também foi finalista do Booker e recebeu vários prémios – e que trata do Paquistão e da história política do país. Cinco anos depois, em 1988, foi a vez de `Versículos Satânicos', quando a história de Salman Rushdie mudou radicalmente. Não porque fosse um livro `extraordinariamente' melhor do que `Filhos da Meia-Noite' (mas é), mas porque não provocou apenas polémica – uma palavra tão gasta que hoje não quer dizer nada – provocou uma vasta onda de protestos, destruição, mortes, atentados à bomba, guerra diplomática e, de facto, a chamada do nome de um escritor para as primeiras páginas de todo o mundo.
Ironias: o governo do Irão tinha premiado a tradução de `Vergonha' publicada em Teerão dois anos antes; Rushdie tinha apoiado a revolução islâmica do Irão em 1979 e por várias vezes atacara os EUA, “o polícia do mundo”, que criticara asperamente por causa do bombardeamento de Tripoli, Líbia, três anos antes de Muammar Gaddafi se ter juntado ao coro dos que pediam a morte de Rushdie.
E porquê pedir a morte daquele homem de 41 anos, com ar de diabrete, que nascera em Bombaim em 1947, filho de um empresário com gostos literários e de uma professora, que o mandaram em 1964 para Inglaterra, onde acabou por se formar em História na universidade de Cambridge? Porque, no livro, é atribuída ao Profeta, Maomé, a inclusão de uma passagem mítica controversa do Corão, atribuída a deusas pagãs. Maomé (tratado como Mahound, considerado depreciativo) arrependeu-se e retirou-a, mas o erro tinha sido feito. Há uma lista de pequenas indignidades (um profeta com caspa, um anjo malcriado, mulheres do profeta com nomes de prostitutas, etc.), mas o facto é que uma pequena passagem bastou para incendiar o mundo. O livro, publicado em 1988 em Inglaterra e no início de 1989 nos EUA, provocou marchas de protesto de organizações radicais islamitas em Inglaterra (incluindo a Associação de Estudantes Islâmicos local), que o queimaram em público. Está provado que o aiatola Ruhollah Khomeini nunca leu senão duas ou três páginas (o seu filho confirma) antes de emitir um decreto (uma
`fatwa') em que condena Rushdie à morte e ao fogo dos infernos, com uma recompensa de 6 milhões de dólares para quem executar a sentença, que foi renovada em 2005 (numa declaração aos peregrinos a Meca) e em 2006, pela
Guarda Revolucionária do Irão – e a recompensa aumentada várias
RUSHDIE PERDEU UM OLHO, OU SEJA, FOI ASSASSINADO, MAS NÃO MORREU
vezes. Pelo meio, livrarias foram saqueadas, a redação de um jornal nova-iorquino foi destruída, o tradutor japonês morto em 1991, dez dias depois de ter sido esfaqueado o tradutor italiano. Em 2012, Rushdie publicou `Joseph Anton. Uma Memória' (era esse o nome que Salman Rushdie usou enquanto viveu escondido e sob proteção policial, com aparições esporádicas), e a recompensa iraniana pela sua morte aumentou logo de valor. Durante mais 10 anos, Rushdie foi figura do estrelato pop americano, namorou, apareceu na televisão, deu conferências, veio a Portugal, viajou – mas a ameaça pairava, até que, a 12 de agosto de 2022, alguém a executou.
Hadi Matar tinha 24 anos, nascera na Califórnia (a família regressou entretanto ao Líbano, a Yaroun, uma zona controlada pelas milícias xiitas pró-iranianas do Hezbollah), vivia em New Jersey e comprou o seu bilhete para a conferência-entrevista que ia ter lugar em Chautauqua, um lugar tranquilo e discreto onde escritores, músicos e artistas se encontravam. Esfaqueou-o no rosto, no pescoço e no abdómen. Rushdie, evacuado para um hospital de NY, sobreviveu mas perdeu um olho – ou seja, foi assassinado, mas não morreu. Os pais de Matar, no Líbano, desejaram a sua recuperação e condenaram Hadi.
Quanto a Rushdie, acaba de publicar `Faca. Meditações na Sequência de uma Tentativa de Homicídio', que a D. Quixote lança no próximo mês. Nele, conta como começou a ver o sangue a escorrer e se deu conta de que alguém havia de o matar. A ameaça
era real.