Melhor fotografia do ano Olhando o sofrimento dos outros
Mulher palestina segura o corpo da sua sobrinha”: o autor da fotografia, Mohammed Salem, é fotojornalista da Reuters na Palestina. A imagem remete directamente para o conflito na Faixa de Gaza. Como em todas as guerras, crianças são as principais vítimas inocentes. É o que vemos por representação: uma mulher e uma criança morta. Porque é esta fotografia tão especial para ser considerada a melhor do ano no World Press 2024? Dois corpos, um vivo, outro morto. Ambas as cabeças tapadas. Vítimas sem nome, sem face, representam uma realidade maior. As cabeças estão lado a lado, tia e sobrinha assim irmãs, irmanadas. Os braços e as mãos da mulher amparam a criança morta. Um lençol envolve a menina, mas vemos nos pés umas pantufas, uma ligação à vida interrompida. O contexto dá-nos o vazio dos revestimentos frios da parede e do chão e na branca cobertura plástica, de hospital ou morgue no lado esquerdo. Estará a mulher sentada num banquinho, ou de joelhos, derrotada, soçobrando à dor? Não há mais nada no vazio frio do contexto.
Mas há mais explicando o prémio de melhor fotografia. As cores: mais frias não há, azul, branco, cinzento, excepto, porventura, o castanho-claro do hijab, único sinal de vida na imagem. A distância das protagonistas: tão próximas que só não as conhecemos porque não lhes vemos as caras. O ângulo da câmara: de cima para baixo, atira o peso da imagem sobre elas, mas apenas ligeiramente, para ainda nos ligarmos à humanidade derrotada. A luz: fria, de hospital ou morgue. A composição: perfeita. A diagonal do alto à esquerda para a direita baixa corre uma linha imaginária da cabeça da menina e da mão e do braço da tia, pelo corpo morto, até chegar às pantufinhas. Do topo direito, a outra diagonal desce pelo braço esquerdo da mulher para a sua perna direita. Os corpos formam uma cruz. As diagonais cruzam-se a meio do corpo da menina, mesmo abaixo do cotovelo da mulher, centro geométrico. E dividindo a foto em duas partes, a cabeça da mulher e todo o seu corpo estão no centro da imagem. Os mosaicos na parede estão perfeitamente paralelos aos limites da imagem e, assim, a composição é a de uma suspensão do tempo, que não interrompe um imaginado subtil movimento da mulher e a inclinação do corpo da menina.
O que vemos é como uma estátua, um monumento. O mesmo de sempre, de uma mulher chorando um inocente morto no seu colo. A mesma Madonna que, milénios atrás, Stabat Mater Dolorosa. Não há engano: a fotografia é a melhor do ano por mostrar a humanidade que morre com uma criança, mas principalmente porque a mostra numa composição estética perfeita. Perante a beleza da representação do horror, a nossa perturbação, a inquietação dos que vemos, aumenta.
A fotografia é a melhor do ano por mostrar a humanidade que morre com uma criança