Correio da Manhã Weekend

O verbo solto e à solta

OS ANARQUISTA­S SÃO IMBATÍVEIS, SOBRETUDO QUANDO SUBVERTEM OS CLICHÉS. “O POVO É QUEM MAIS ORDENA”? NÃO. “O POVO É QUEM MAIS ORDENHA” “Quem diria que o Festival da Eurovisão servia para alguma coisa?”

- TÍTULO `25 de Abril: No Princípio era o Verbo' AUTOR Manuel S. Fonseca, ilustraçõe­s Nuno Saraiva EDITORA Guerra & Paz

Os 50 anos do 25 de Abril provocaram­enchentes bibliográf­icas nas livrarias da pátria. Há de tudo: histórias sérias, pouco sérias. Histórias alternativ­as, histórias ficcionada­s. Mas haverá algum livro tão colorido (em vários sentidos da palavra) como este ‘25 de Abril: No Princípio era o Verbo’, escrito por Manuel S. Fonseca e ilustrado por Nuno Saraiva? Não creio.

A primeira parte da obra é Manuel S. Fonseca ‘vintage’: prosa enxuta, musical, obviamente cinematogr­áfica, só para listar os passos principais do drama. Começa com a publicação de ‘Portugal e o Futuro’, o livro de António de Spínola que declarava a impossibil­idade de resolver o impasse nas colónias por via militar.

Depois, avança para o Golpe das Caldas, a 16 de Março, uma espécie de aperitivo para o prato principal. Esse viria de 24 para 25 de Abril, quando a rapaziada pôs a rolar ‘E Depois do Adeus’ para dizer adeus à outra senhora. Quem diria que o Festival da Eurovisão, afinal, servia mesmo para alguma coisa?

Mas é Salgueiro Maia que, sem surpresas, assume o protagonis­mo desta fita. “Acabar com o estado a que chegámos” foi o mote para rumar a Lisboa, enfrentar a resistênci­a (ténue), dar o corpo às balas (que não chegaram a ser disparadas) e só baixar os braços quando o trabalho estava feito. Tinha 29 anos.

Na segunda parte do livro, o verbo continua solto. Mas as palavras são agora slogans, pichagens ou provocaçõe­s que cobriram as paredes da cidade nesses meses delirantes. Os anarquista­s são imbatíveis. “O povo é quem mais ordena”? Não. “O povo é quem mais ordenha.”

A primeira parte é Manuel S. Fonseca vintage: prosa enxuta, musical, obviamente cinematogr­áfica, só para listar os passos principais do drama

“Slogans, pichagens ou provocaçõe­s que cobriram as paredes”

A juntar a estas alquimias linguístic­as, há outras. “Viva a humidade sindical” é um achado. “Viva a dentadura do proletaria­do” é outro.

Mas nem tudo é paródia. Há informaçõe­s históricas importante­s e rigorosas (“Vasco, o louco; Francisco, o rouco” – uma caracteriz­ação perfeita do primeiro-ministro Vasco Gonçalves e do Presidente da República Costa Gomes). E observaçõe­s que deixam qualquer analista político roído de inveja (“Portugal é o maior país do mundo: tem a capital em Lisboa, o governo em Moscovo e os portuguese­s no Brasil”, uma súmula brilhante do País pós-11 de Março).

De resto, há slogans marxistas (tendência Groucho, não Karl) como “Viva o próximo governo, que este já tomou posse” (entre 1974 e 1976, houve seis governos provisório­s), slogans liberais (“A República é do povo, não é de Moscovo”), slogans tecnicamen­te informados (“Abaixo a foice e o martelo, viva a Black and Decker”) e até slogans xenófobos (“Queremos nacionaliz­ar a bola de Berlim e o bolo inglês”). Vasco Gonçalves, que aprendeu alguma coisa com os erros de Salvador Allende no Chile, não foi tão longe. “Nós respeitámo­s o capital estrangeir­o”, dizia ele, enquanto nacionaliz­ava a economia nativa. A bola de Berlim e o bolo inglês continuara­m em paz.

A minha preferida, porém, continua a ser: “Não há eleições. D. Sebastião volta para a semana.” Seja na monarquia, na república, na ditadura ou até em democracia, não será essa a mais funda aspiração nacional?

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JOÃO PEREIRA COUTINHO COLUNISTA
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