Correio da Manha

O clube dos distraídos

- António Rego Padre

OS MÍSTICOS DO NOSSO TEMPO TÊM DE TER OS OLHOS SALPICADOS DE PÓ

Ter de escrever periodicam­ente traz uma grande exigência: pôr os olhos no chão. Os grandes místicos podiam passar a vida a olhar para o céu e só de Deus falar. Os místicos do nosso tempo têm de ter os olhos salpicados de pó para desejarem ver com clareza o céu. Dizemos em linguagem mais nossa que não podemos passar a vida a olhar para as nuvens.

Aos apóstolos, que na Ascenção de Jesus se ficaram a olhar para os céus vazios disse o Senhor: “porque estais a olhar para o céu?”

Venham santos, místicos e até pecadores, avisar-nos de novo: “não cansem o pescoço só a olhar para o céu. Olhem a terra, é a vossa pátria, aí erguereis o monumento da vossa vida e tentareis edificar o castelo dos vossos sonhos. Daí dareis o grande salto para o infinito, para o eterno; é a grande via que vos conduzirá definitiva­mente para a casa do vosso pai. A terra não passa dum frágil patamar de passagem para uma altura e dimensão que nem suspeitais.

Andamos por estes dias quase de mãos dadas com os nossos falecidos sem o mínimo de repugnânci­a. Não estavam frias as suas mãos. O afeto tirou o medo e até nos atrevemos a abraçá-los, cinco, dez, vinte anos depois do seu passamento. Olhar a sua fotografia estática soube a pouco mas não nos fez mal. Reconforta­ram-nos as conversas secretas que com eles travámos e até pensamos que nos ajudaram a gostar mais da vida e nos alimentara­m a esperança do reencontro. Diálogo sublime, fraterno, possível por Jesus Cristo ter mantido este segredo de vida plena mesmo que momentanea­mente atravessad­a pela morte. Esta, perante a eternidade não passa dum acontecime­nto menor, o suficiente para o nosso coração não se conformar. Reconheço que sem a fé todo este discurso é absurdo. Mas quem se pode sustentar apenas do absurdo?

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