Correio da Manha

MASSA COM CHAMBÃO

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Nós, os que viemos dos anos 50, 60 e primeira metade da década de 70, somos provavelme­nte os derradeiro­s portuguese­s a terem conhecido – em pleno – a chamada “cozinha de família”. Há razões para uma certa nostalgia. Tudo isso aconteceu antes do aumento de alergias, intolerânc­ias, e de nascer aquela geração, já criada em democracia e em era de abundância, que popularizo­u a expressão “não gosto de”. Com a “sociedade da abundância” (com epicentro em Lisboa) normalizou-se o direito a escolher o menu e a recusar comer aquilo de que se gostava menos – ou, nas palavras dos próprios, aquilo “de que não se gostava”.

Um destes dias, por graça, à mesa de almoço com colegas de trabalho (toda a gente mais nova porque, inexplicav­elmente, vou ficando mais velho), quis saber “do que não gostavam” de comer”. Fiz um inquérito e encontrei uma lista de epopeia digna de publicar num despacho do Diário da República: queijo, enchidos, café, melão, leite, puré de batata, brócolos, ovo cozido, pescada, mariscos, alface, arroz de grelos, polvo, feijão ou grão, cebola, alho, cabrito e borrego, leite creme, arroz doce, “carne com nervos”, sardinha, bacalhau cozido ou em posta – a lista continuava (eram sete pessoas) mas desisti. Pus-me a imaginar a gincana necessária para alguém alimentar a família com essa vasta lista de interdiçõe­s.

De modo que, no limite, alma amiga sussurra-me pelo Whatsapp duas palavras mágicas: massa e carne, uma ligação de estrondo. Mas não qualquer carne e sim a carne mais suculenta para qualquer estufado de bovino: o chambão (a um preço médio, sem muita pesquisa, de 7 a 9 euros o quilo), onde se reúnem as qualidades para gemer dentro da panela, em fogo ou no forno: nervos, gelatinas, fibras, pequenas gorduras que, depois de limpeza, ficam como aglomerado­res de sabor.

Não tem segredo nenhum – depende do cozinheiro e da vontade de amar os outros. Comecemos por cortar a carne aos pedaços com o formato exigido, a fim de frigir na panela de ferro em duas colheres de azeite e polvilhand­o com uma colher de sobremesa de farinha; douremo-la e juntemos cebola picada, alho, tomate aos cubos, polpa de tomate, duas colherinha­s de colorau, alho – e temperemo-la a jeito com um copo de vinho branco, louro e uns grãos de pimenta; tudo básico; na altura certa, água quente e fogo lento durante uma hora. Acrescente­mos água ou caldo gerado pela própria cozedura; e, agora, a massa. Por mim, ‘rigatoni’, o tubo grosso e largo, frisado, suculento, para ferver apenas sete minutos neste caldo que deve terminar espesso, nunca aguado; nesta altura, às vezes, junto-lhe uns pimentos ‘morrones’ para aborrecer os mais presumidos. O resultado é maravilhos­o. Mas eu só me dou com gente com apetite, como sabem.

MASSA E CARNE,

UMA LIGAÇÃO DE ESTRONDO

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