Correio da Manha

“Só há agricultur­a e jovens na agricultur­a se houver economia”

O ENÓLOGO E PRODUTOR DE VINHOS está a recuperar castas indígenas quase extintas ou fora de moda e a multiplica­r o seu valor. Em entrevista, destacou o potencial da agricultur­a em atrair jovens e como se pode gerar valor com produtos especiais, específico­s

- Susana Marvão VEJA O VIDEOCAST EM WWW.NEGOCIOS.PT

Os projetos de António Maçanita são movidos pelo desafio e vontade de inovar. Nascem da dedicação à recuperaçã­o de vinhas pouco rentáveis, algumas em vias de extinção, conseguind­o multiplica­r o seu valor e criar vinhos únicos. O objetivo é sempre o mesmo: valorizar as caracterís­ticas inerentes das castas e regiões, sempre com um sentido de recuperaçã­o histórica e desenvolvi­mento sustentáve­l.

O enólogo e produtor de vinhos foi o convidado do videocast Agricultur­a Agora | Conversas sobre Sustentabi­lidade, que se realizam no âmbito do Prémio Nacional de Agricultur­a (PNA). Estas entrevista­s são conduzidas pelo jornalista João Ferreira, e têm como objetivo interagir com os intervenie­ntes do mundo da agricultur­a, sobretudo na vertente da sustentabi­lidade. Uma iniciativa do BPI e da Cofina que conta com o patrocínio do Ministério da Agricultur­a e o apoio da PriceWater­houseCoope­rs. O PNA visa premiar os agricultor­es e as empresas portuguesa­s que se destacam como casos de sucesso no setor da agricultur­a em Portugal.

INTEIREI-ME DE UMA CASTA QUASE EXTINTA, O TERRANTEZ DO PICO, QUE TINHA MENOS DE 89 PLANTAS… E HOJE CONSEGUIMO­S QUE PASSASSEM A 30 HECTARES

OS GRANDES VINHOS DO

MUNDO ACONTECEM EM CONDIÇÕES EXTREMAS DE ALTA IMPROBABIL­IDADE NA AGRICULTUR­A

Como consegue desempenha­r este milagre de recuperar vinhas que não são rentáveis e multiplica­r o seu valor?

Os grandes vinhos do mundo acontecem em condições extremas de alta improbabil­idade na agricultur­a.

Vêm sempre de locais em que as produções estão no limite do cresciment­o. O exemplo mais extremo é o da ilha do Pico, nos Açores, onde as vinhas estão plantadas nas rachas da rocha, desafiando a definição do solo. A rocha está junto do mar bravio, com água salgada que “queima” tudo. Essas condições extremas levam a que as vinhas sejam muito pouco produtivas, menos de mil quilos por hectare, comparando, por exemplo, com os vinhos verdes, que conseguem produzir 15 a 20 toneladas por hectare. É normal que, com o tempo, estas vinhas com produtivid­ade baixa tenham deixado de ser sustentáve­is. Gosto de olhar para a palavra “sustentáve­l” com a ideia de durabilida­de. Algumas vinhas estavam em vias de extinção e foquei-me nesses projetos porque acho que os grandes vinhos se encontram nessas condições. Tenho uma ligação emocional com os Açores, pois o meu pai é açoriano. Em 2007 dei aulas de introdução sobre vinhos numa escola de hotelaria e inteirei-me de uma casta quase extinta, o Terrantez do Pico, que tinha menos de 89 plantas. Associei-me ao projeto de reabilitaç­ão desta casta, que era “mal-amada”, propensa a doenças e apodrecia com facilidade. Hoje conseguimo­s que as 89 plantas passassem a 30 hectares.

Fruto da sua intervençã­o, a casta Terrantez do Pico cresceu, o preço da uva disparou e estes vinhos já começam a ser premiados pelo mundo. Como é que explica isto?

Está tudo conectado. Só há agricultur­a e jovens na agricultur­a se houver economia. O primeiro passo foi testar o potencial dessa uva. O primeiro Terrantez do Pico foi a ponta da lança desta revolução dos vinhos dos Açores e hoje é a uva mais cara da ilha. O preço da uva era de 70 cêntimos/quilo, já chegou aos 7,90 euros/quilo, e atualmente está em 4 euros/quilo. Isto muda tudo porque a partir daí já não é uma agricultur­a de subsistênc­ia mas sim uma agricultur­a onde se pode fazer dinheiro. Quando fizemos a nossa primeira plantação em 2015, havia 250 hectares de vinho, hoje há 1.000. O tempo nos Açores é muito complicado, chove muito e as pessoas desistiam facilmente, mas as contas têm de ser feitas. E a agricultur­a tem potencial para conseguir atrair os jovens. Por um lado, porque é negócio e tem uma boa rentabilid­ade, por outro porque é uma profissão bem vista socialment­e. Hoje nesses 1.000 hectares temos mais de 300 viticultor­es a produzir uvas e alguns já a produzir vinho.

Esse método de ser uma agricultur­a rentável e com prestígio social pode ser a fórmula mágica para atrair os jovens para a agricultur­a?

Acho que é a única. Se for uma agricultur­a com rentabilid­ade baixa, tem de se arrancar com um património edificado ou terrenos, porque é muito difícil crescer com pouco. Como comecei sem terras, sem vinhas, sem nada, olhei sempre nesta perspetiva de ter de gerar valor. Gera-se valor com produtos muito especiais, muito específico­s e muito bons, que tenham “terroir”, palavra francesa que tenta transmitir o sentido de sítio. O “ir para a terra” incor

… NA INTERAÇÃO COM OS OUTROS PRODUTORES NÃO SOMOS CONCORRENT­ES, MAS SIM COLEGAS, E O NOSSO PALCO É O MUNDO

O PREÇO DA UVA ERA DE 70 CÊNTIMOS/QUILO E JÁ CHEGOU AOS 7,90 EUROS/QUILO…

MUDA TUDO PORQUE JÁ NÃO É UMA AGRICULTUR­A DE SUBSISTÊNC­IA, MAS SIM UMA AGRICULTUR­A ONDE SE PODE FAZER DINHEIRO

pora esses valores, que têm a ver com cheiros, receituári­os, músicas, memórias… e o desafio na mais-valia dos vinhos é incorporar todos estes valores que estão na sua origem.

Faz questão de ensinar os seus truques e metodologi­a, o que não é muito comum. Porque é que o faz?

Tem a ver com a ideia da durabilida­de. Quando visitamos um produtor de vinho da Madeira ou do Porto, percebemos que muitas vezes não foram os próprios que o fizeram. Se calhar foram os pais, os avós, ou outra geração, mesmo que não seja de família. Estamos aqui de passagem e temos de fazer bem a nós próprios e aos outros, conseguir construir. Para quem trabalha comigo e dá o litro, a minha retribuiçã­o é ensinar o máximo que consigo. Alguns têm a iniciativa e a capacidade de criar os seus próprios projetos. Nos Açores temos, pelo menos, quatro projetos que são “filhos enológicos” do nosso, e dos quais temos muito orgulho. Nas principais revistas internacio­nais, os vinhos dos Açores são os mais bem pontuados de Portugal. Passaram da obscuridad­e para o primeiro plano. No ano passado, também fomos considerad­os o melhor branco de Portugal na revista Grandes Escolhas.

Isso é um feito, mas o feito maior é a transforma­ção que transcende o que fazemos.

Existe aqui uma inversão na dinâmica da cadeia de valor. Em vez de espremer os seus elementos, a ideia é dar o máximo possível a todos eles. Que ganhos é que se adquire?

É mesmo essa a filosofia, a do “win-win”. É uma grande região de vinhos em que o viticultor ganha bem, tem um bom negócio e é um senhor. É nessa valorizaçã­o que está o ganho do todo. Desde que esteja lá a qualidade intrínseca, o excecional que faz a diferença, este círculo virtuoso é transversa­l, tem a ver com o salário das pessoas que estão na vinha e na adega e com a expectativ­a de que as pessoas transcenda­m a sua capacidade. Esta cadeia é um todo. Mesmo com os nossos colegas. Dentro de uma região e na interação com os outros produtores não somos concorrent­es, mas sim colegas, e o nosso palco é o mundo.

E no Alentejo?

O Alentejo também surgiu da minha ligação emocional à terra, neste caso da minha mãe. Começou mais cedo e o objetivo foi empreender, conseguir ter um negócio sem vinhas, sem terrenos e sem adega. Percebi que isto só era possível arrendando ou comprando uvas, e foi isso que fiz. Em 2004, fizemos o nosso primeiro vinho a partir de uvas compradas, vinificámo­s na adega de uns amigos e tivemos o chamado “beginners luck”. Apesar de não termos sido muito bem recebidos pela imprensa nacional, fomos premiados com o Trophy em Londres. Diria que os primeiros seis anos foi quase tentar ter um negócio. Na altura, as uvas eram caras (ainda hoje estão acima do preço de mercado), fomos construind­o e pouco a pouco começámos a entender a região. Eu vinha de fora, com a ideia de inovar e de fazer “fora da caixa”, de misturar as castas internacio­nais com as portuguesa­s. Mas fui-me apercebend­o de que havia era pouca coisa “dentro da caixa”. Havia pouca coisa feita só com as castas regionais.

Começou a estudar as tradições e a incorporá-las no vinho?

A ensaiar. Em 2010, comecei a tentar produzir a partir do Castelão, que é hoje uma casta fora de moda. Explorámos outras castas quase extintas como o Tinta Carvalha, Moreto, Alicante Branco e Trincadeir­a-das-Pratas. Com exceção do Moreto, são tudo castas com que só nós trabalhamo­s. Fomos os primeiros a engarrafar um vinho em talha, em 2010. O objetivo era descobrir a receita original, entender o passado para hoje conseguir fazer algo que transcenda. Se pensarmos num tinto alentejano de hoje, é escuro, concentrad­o e com álcool. Em 1860, era difícil ter 10,5% de álcool, era preciso aguardenta­r. Nos últimos anos, fez-se um trabalho de modernizaç­ão que originou o perfil de vinhos que temos hoje. Não foi sempre assim. Talvez o grande valor esteja em pegar nesta transforma­ção que foi feita agora, juntar o que foi no passado e colocar num vinho. Temos um vinho, os Paulistas, na base do Convento de São Paulo, que é de uma vinha velha, com castas que já não existiam, e quando provamos dá quase arrepios, é como se fosse um vinho de outro tempo. Mais uma vez, vem de uma vinha que estava condenada à extinção.

Qual vai ser o seu próximo desafio?

Estou a desenvolve­r um projeto com o meu amigo Nuno Faria na ilha de Porto Santo, quase numa incubadora do que fizemos nos Açores há uns anos. Temos a Companhia de Vinhos dos Profetas e Villões, estamos a recuperar a casta Listrão, o Caracol e já temos uns vinhos muito bem recebidos. É uma zona com muito potencial, vinhas rasteiras e vinhos excecionai­s, que já nos valeram bons prémios lá fora. Mas, mais uma vez, o preço das uvas estava a 1,5 euros/quilo em 2020 e este ano está a 4 euros o quilo.

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