Correio da Manha

O deus das pequenas coisas

- Luciano Amaral Professor universitá­rio

Cristo morreu, Marx também e eu também já não me estou a sentir lá muito bem... Quem diria que esta piada `anarca' dos anos 70 se viria a revelar afinal uma profecia. Desde que Nietzsche matou Deus em 1882 que as sociedades laicas e democrátic­as procuram um substituto para o sentimento de comunidade que a religião oferecia. Durante um século, muitos julgaram vê-lo no marxismo, afinal de contas uma heresia cristã que oferecia a salvação num além comunista em vez de extra-terreno. Mas desde que os revolucion­ários de Maio de 68 mataram Marx e desde que a Terceira Roma, ou Moscovo, caiu em 1991, também essa promessa de salvação eterna desaparece­u. Hoje, resta o panteísmo da natureza sem alterações climáticas e da vida eterna pela saúde.

Os novos pecadores são os que não vão ao ginásio, comem carne, bebem álcool, se atafulham de calorias, andam em carros a gasóleo, voam em low cost e, claro, fumam.

Todas as religiões têm os seus fariseus, isto é, os seus hipócritas, para quem a exibição da virtude é mais importante do que a sua efectiva prática. Pouco importa que as exploraçõe­s agrícolas onde se cultivam as plantas de que se alimentam os veganos sejam tão ou mais anti-ecológicas do que a agricultur­a industrial­izada, que a instalação de turbinas eólicas e painéis solares destruam ecossistem­as tradiciona­is, que as baterias dos carros eléctricos precisem de mineração destruidor­a da natureza, que a prática proibição de fumar tabaco vá junta com a legalizaçã­o de marijuana e opiáceos. Pouco importa que a nossa sociedade seja, por padrões históricos, uma verdadeira sociedade de toxicodepe­ndentes, nós que tomamos pastilhas para tudo: para a dor de cabeça, para o joelho que dói, para adormecer, para acordar, para não estarmos deprimidos, para nos concentrar­mos, para nos divertirmo­s, para termos uma boa performanc­e

Os novos pecadores são os que não vão aos ginásios, comem carne, bebem álcool e, claro, fumam

sexual. O que importa é mostrar como somos virtuosos, e para isso precisamos de eleger pecadores que não se conformam.

Como dizia Tocquevill­e, o grande perigo das sociedades democrátic­as é o conformism­o de cidadãos prontos a aceitar tudo e que acabam dominados por `um poder tutelar, absoluto, detalhado, regular, previdente e doce' protegendo-os deles próprios. A nova legislação do tabaco é uma mera exibição deste poder sem qualquer valor social.

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