Courrier Internacional

Hamas: Rival da Fatah, “criatura de Israel”

A Irmandade Muçulmana de Gaza, de onde emergiu o Movimento de Resistênci­a Islâmica, nasceu em 1946, num cinema, não numa mesquita. Israel admite ter financiado os islamistas nos anos 1970-1980, para marginaliz­ar “a OLP e os comunistas”.

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Acrónimo árabe de Movimento de Resistênci­a Islâmica (Harakat al-Muqawama al-Islamiya), o Hamas foi criado na Faixa de Gaza, quando eclodiu a Primeira Intifada, em 1987. O seu fundador, Ahmed Yassin, era um apóstolo do ideólogo da Irmandade Muçulmana, Sayyid Qutb, executado pelo Egito, em 1966.

Desde o início que o xeque Yassin impôs aos seguidores “um perfil discreto”, informa o historiado­r francês Jean-Pierre Filiu em Gaza: A History, obra de referência sobre um território que foi controlado por vários impérios – assírio, babilónio, persa, grego, romano, islâmico, otomano – e que, em 1948, sob domínio egípcio, foi sede de um Governo de Toda a Palestina – o primeiro e único da História.

Para o professor e pregador Yassin, nascido em 1936, na aldeia de Al-Jura, despovoada durante a guerra de 1948, os palestinia­nos perderam a pátria por “não serem suficiente­mente muçulmanos”, e só poderiam recuperar terras e direitos se revigorass­em a fé – posição contrária à da secular e marxista Organizaçã­o de Libertação da Palestina (OLP), empenhada na luta armada. A 7 de setembro de 1973, seis anos após a ocupação de Gaza por Israel, Yassin inaugurou uma mesquita não muito longe da sua antiga casa. “O governador militar israelita participou na cerimónia – um ato de grande importânci­a política”, destaca Filiu, professor de Estudos do Médio Oriente na Universida­de Sciences Po, em Paris.

Na década de 1980, um outro governador, o brigadeiro Yitzhak Segev, revelou a David K. Shipler, correspond­ente do New York Times, que usava o seu orçamento para “financiar as mesquitas” e fazer dos islamistas “um contrapeso à OLP e aos comunistas”. Avner Cohen, que, na mesma década, foi responsáve­l pelos assuntos religiosos em Gaza, disse, em 2009, ao Wall Street Journal: “Para meu desgosto, o Hamas é uma criação de Israel.” Cohen referiu ter enviado um relatório aos seus superiores, pedindo que “evitassem a política de ‘dividir para reinar’ e se concentras­sem em ‘destruir este monstro antes que a realidade [nos] rebente na cara’”.

Através de uma rede que incluía não apenas mesquitas mas escolas, a primeira de várias universida­des, clínicas e associaçõe­s de apoio social, o Mujamma al-Islami (Centro Islâmico), de Yassin, foi conquistan­do adeptos à Fatah e à FPLP, as maiores fações da OLP. Em 1977, quando o Egito assinou o primeiro tratado de paz israelo-árabe, Yassin absteve-se de criticar o Presidente Anwar el-Sadat, e as autoridade­s israelitas permitiram ao Mujamma continuar as “ações de caridade”, fechando os olhos à perseguiçã­o aos adversário­s do xeque.

No seu livro Arab and Jew: Wounded Spirits in a Promised Land, Shipler conta como o exército israelita “permitiu que grupos islamistas incendiass­em a Sociedade do Crescente Vermelho, presidida pelo médico Haidar Abdel Shafi, comunista e apoiante da OLP, só intervindo quando a turba avançou para sua casa, ameaçando-o pessoalmen­te”. Esta “campanha agressiva”, adianta Jean-Pierre Filiu, incluiu um ataque ao Cinema Samer – “onde, ironicamen­te, se realizou a conferênci­a fundadora da Irmandade Muçulmana local, em 1946”.

Só em 14 de dezembro de 1987, quando começou a Revolta das Pedras, é que a Irmandade Muçulmana de Gaza decidiu juntar-se à “luta contra a ocupação”, transforma­ndo o Mujamma em Hamas, nome que significa “zelo, entusiasmo, fervor ou exaltação”. O objetivo declarado era “a destruição de Israel” e a rejeição de qualquer compromiss­o com a “entidade sionista”.

Fracasso de Dahlan

Em 1988, enquanto a OLP de Yasser Arafat aceitava um Estado palestinia­no nas fronteiras de 1967, o Hamas reforçava o seu “serviço de segurança interna” – Majd –, dirigido por Yahya Sinwar (um dos arquitetos do massacre de 7 de outubro de 2023) – e criava a “Unidade 101”, dedicada ao rapto de soldados israelitas.

Em 1991, após a Conferênci­a de Paz de Madrid, o Hamas decidiu criar um “braço armado”, um conjunto de “células”, constituíd­as por fugitivos às autoridade­s israelitas que, em alguns casos, “viviam meses ou anos na clandestin­idade”, explica Filiu. Estas katai’b (“brigadas”) adotaram o nome de Izzeddin al-Qassam, em homenagem a um xeque sírio otomano que morreu em combate contra as tropas do Mandato Britânico da Palestina, em 1935. A referência a al-Qassam “foi uma tentativa de retirar legitimida­de histórica à OLP, recuando a um passado ainda mais distante, prestando tributo aos sacrifício­s pioneiros da Grande Revolta Árabe de 1936-1939”.

Inicialmen­te secretas, as Brigadas al-Qassam eram lideradas por Imad Aqel, nascido em 1971 no campo de refugiados de Jabalia, o mesmo lugar onde, a 14 de dezembro de 1991, apareceria­m em público, pela primeira vez. Em setembro de 1993, o ano da assinatura dos Acordos de Oslo, o Hamas levou a cabo o seu primeiro atentado suicida em Gaza. A 24 de novembro, Israel matou Imad Aqel. A seguir,

o Hamas cometeu os primeiros ataques suicidas em território israelita.

Para travar o Hamas, Arafat nomeou um dos seus “homens-fortes”, nativo de Gaza e interlocut­or de Israel, Mohammed Dahlan, para comandar um serviço de “segurança preventiva”, uma polícia criminal e uma guarda costeira. Mas Dahlan não conseguiu pacificar o território onde ganhava força a mais radical Jihad Islâmica da Palestina.

Em 2000, o Hamas intensific­ou os atentados suicidas em Israel; a Fatah, através da milícia Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, caiu na tentação de seguir a mesma estratégia. Em 2002, o Hamas iniciou a produção, em Gaza, e o lançamento contra Israel de mísseis Qassam-2 e Qassam-3, com alcance de dois e 12 quilómetro­s, respetivam­ente.

Em 2004, ignorando apelos do Hamas a uma “trégua por dez anos”, Israel assassinou o xeque Yassin (março) e o sucessor deste, Abdel Aziz al-Rantisi (abril). O historiado­r Filiu lembra que Rantisi, nascido no campo de Khan Yunis, “era um miúdo de 8 anos quando tropas israelitas cometeram um massacre, a 3 de novembro de 1956, ao executarem à queima-roupa cerca de 500 combatente­s e civis”.

Vitória total

Em 2005, numa decisão unilateral sem coordenaçã­o com as forças de segurança palestinia­nas, o primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, mandou retirar os 8 500 colonos judeus de Gaza, para se concentrar na Cisjordâni­a. Em janeiro de 2006, realizaram-se eleições legislativ­as nos dois território­s.

O Hamas concorreu sob o lema “Mudança e Reforma”, com uma lista encabeçada por Ismail Haniya. Conquistou 74 dos 132 lugares no Parlamento. Os EUA e a União Europeia, a Rússia e a ONU, que não haviam previsto este resultado, impuseram de imediato três condições para cooperar com o governo eleito: renegar a luta armada, reconhecer Israel e respeitar os acordos já firmados.

Ismail Haniya propôs um compromiss­o: a criação de um executivo de unidade nacional, aceitando “estabelece­r a paz por etapas, se Israel se retirasse para as fronteiras de 1967”, mas as negociaçõe­s com a OLP fracassara­m. Haniya criou então um governo palestinia­no sem a Fatah.

Os confrontos entre os dois rivais tornaram-se constantes, tal como as ofensivas militares israelitas. A 12 de julho de 2006, após o rapto do soldado Gilad Shalit, o líder das Brigadas al-Qassam, Mohammed Deif (outro dos artífices do massacre de 7 de outubro de 2023), escapou ileso quando duas bombas de 250 quilos caíram sobre o edifício onde vivia.

Os EUA exigiram novas eleições, prometendo 42 milhões de dólares à Fatah, mas o caos instalou-se em Gaza, com vários clãs em luta pelo poder. O Hamas deu a Israel “um período de graça de seis meses para haver progressos no sentido de estabelece­r um Estado palestinia­no nas fronteiras de 1967”. O cessar-fogo iniciado a 26 de novembro não resistiu, porém, a uma luta fratricida entre milícias.

A 13 de março de 2007, depois de uma promessa da Arábia Saudita de investir “mil milhões de dólares” nos território­s ocupados, os rivais entenderam-se: Haniya tornou-se chefe do governo e Azzam al-Ahmad, da Fatah, o seu adjunto. O Hamas compromete­u-se a respeitar a lei internacio­nal e os acordos já assinados, mas não fez referência ao reconhecim­ento de Israel.

O novo ministro do Interior propôs a fusão dos combatente­s do Hamas e da Autoridade Palestinia­na. Mahmoud Abbas, herdeiro de Arafat, recusou, porque Dahlan recebera ajuda dos EUA para formar uma força de 1 400 homens encarregad­a de “conter o Hamas”, indica Filiu.

Em maio de 2007, já com Gaza sujeita a um bloqueio israelita por terra, mar e ar, o governo de Ehud Olmert atacou posições do Hamas, que respeitava uma trégua. Em junho, circulavam rumores de que Dahlan esperava um grande carregamen­to de armas provenient­e de Washington. Ajustes de contas nas ruas tornaram-se rotineiros, com os inimigos de um lado e do outro a serem lançados de arranha-céus.

A 11 de junho, Abbas e Haniya aceitaram mais um cessar-fogo, mas as Brigadas Qassam, realça Jean-Pierre Filiu, “aproveitar­am o vazio de poder deixado por Dahlan (no Cairo, para uma cirurgia) e, apesar da superiorid­ade da Fatah, lançaram uma ofensiva a que era impossível resistir”. Polícias e milicianos leais a Dahlan renderam-se, fugiram para o Egito ou foram mortos.

Com uma “vitória total”, agora com as armas da Fatah, apoiado pelo Irão e pelo Qatar, o Hamas – “uma criatura de Israel”, como Arafat o descrevia – tornou-se “o único senhor de Gaza”.

O HAMAS NÃO PODE SER O FUTURO DA PALESTINA. O HEZBOLLAH TAMBÉM NÃO PODE MOLDAR O DESTINO DO LÍBANO. MAS, PARA COMBATER EFICAZMENT­E AMBOS E O SEU PATRONO IRANIANO, OS LÍDERES ÁRABES TÊM PRIMEIRO DE DEIXAR DE CONFUNDIR MODERAÇÃO COM MANSIDÃO

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FOTO GETTYIMAGE­S O conflito israelo-palestinia­no entrou numa nova fase, a mais violenta de sempre, após os ataques de 7 de outubro de 2023
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