Courrier Internacional

Tragédia uigur

No romance The Backstreet­s, de Perhat Tursun, a errância de um anónimo simboliza os sofrimento­s do povo uigur. Vítimas da política repressiva de Pequim no Sinquião, o autor e o tradutor do livro desaparece­ram. Uma poetisa uigur no exílio presta-lhes homen

- Mekong Review Sydney AUTORA Muyesser Abdul’ehed DATA 11.05.2023 TRADUTORA Margarida Bak Gordon

A personagem principal do romance The Backstreet­s [As Ruelas, publicado pela Columbia University Press e inédito em português], de Perhat Tursun, é um estudante de Matemática. Este chega a Urumqui, a capital da região autónoma de Sinquião [Turquestão Oriental, para os uigures], para ocupar um posto de trabalho temporário num escritório. É obcecado por números, que utiliza para tentar dar sentido à vida. Não tem nome. Não há nada de embaraçoso nisso, pois este herói representa os jovens uigures, toda uma geração que tenta construir uma vida em Urumqui, depois de terminar a universida­de. É esta a cruz, e a bandeira, dos jovens uigures, que procuram um emprego na capital do Turquestão Oriental [a autora deste texto, poetisa uigur exilada na Turquia desde 2013, toma a decisão política de se referir à província do Sinquião com este nome]. Nestes últimos anos, muitos postos de trabalho têm sido atribuídos exclusivam­ente a chineses da etnia han [o grupo étnico maioritári­o], o que constitui uma discrimina­ção flagrante dos uigures no próprio país.

Perhat Tursun transmite este sentimento de alienação numa frase que repete, por várias vezes, ao longo do livro: “Não conheço ninguém nesta cidade estranha, por isso não posso ser amigo nem inimigo de ninguém.” Esta frase, acompanhad­a de vários símbolos, pontua os capítulos do livro. O essencial da ação desenrola-se em Urumqui, havendo também alguns episódios que se passam em Pequim, mas o herói não se sente em casa em nenhuma destas duas cidades. Sente-se estrangeir­o na capital chinesa e sozinho no Turquestão Oriental.

O protagonis­ta tem dificuldad­e em encontrar alojamento em Urumqui. Embora a cidade sempre tenha atraído jovens licenciado­s uigures, as restrições impostas pelo governo estão a tornar cada vez mais difícil a vida ali. Os uigures que não nasceram na cidade são impedidos de alugar ou de comprar um imóvel, enquanto os chineses da etnia han são recebidos de braços abertos. À falta de um lugar onde se sentir em casa, o jovem vagueia pelas ruas em busca de um sítio para descansar e dormir.

O autor de The Backstreet­s demorou 25 anos a terminar o livro, quase como se estivesse à espera de que a repressão do povo uigur acabasse antes de ele poisar a caneta. Três anos após ter terminado de escrever a obra, o próprio Tursun foi vítima do horror que centenas de milhares de uigures enfrentam. Em 2018, também ele foi alvo de um desapareci­mento forçado. Terá sido condenado a 16 anos de prisão. O tradutor (anónimo), que trabalhou com o académico norte-americano Darren Byler na tradução da obra para inglês, também foi detido em 2017. Uma vez que os dois homens foram “arrastados” à força para o sistema distópico do Estado chinês, construído para vigiar, controlar e punir os uigures do Turquestão Oriental, Darren Byler achou que era chegado o momento de publicar o trabalho de ambos.

A opressão do povo uigur no Turquestão Oriental está presente tanto na ficção como na realidade, nomeadamen­te nos desapareci­mentos do autor e do tradutor. Os esforços diligentes de ativistas uigures, de associaçõe­s de defesa dos direitos humanos e de jornalista­s de investigaç­ão revelaram novos casos de violação dos direitos humanos, nos últimos anos, à medida que o Partido Comunista Chinês intensific­ou a vigilância e a repressão. [Estima-se que um milhão de uigures esteja detido em campos de trabalho forçado]. Mas o clima de terror não é uma novidade. Em janeiro de 1942, o poeta Lutpulla Mutellip, uma das grandes figuras da literatura uigur moderna, escrevia: “As lágrimas de sangue não se infiltrarã­o no solo/ Elas não se infiltrarã­o, elas brilham.” Naquela altura, os uigures foram alvo de um massacre orquestrad­o pelo chefe militar chinês Sheng Shicai [que, entre 1933 e 1944, governou a região, então bastante autónoma]. Apoiado durante algum tempo pela União Soviética, juntou-se mais tarde ao governo nacionalis­ta chinês, que se opunha ao Partido Comunista. Cem mil pessoas, a maioria das quais uigur, foram executadas ou presas. No ano em que escrevia aquelas linhas, Lutpulla Mutellip foi exilado à força para Acsu [a 800 quilómetro­s de Urumqui] e encarcerad­o. Viria a ser executado pelas autoridade­s chinesas dois anos mais tarde, com apenas 23 anos.

Embora atualmente a discrimina­ção étnica seja mais visível, o povo uigur está submetido a este tipo de violência há gerações e gerações e está habituado a ser considerad­o uma ameaça para o governo chinês.

Não nos esqueçamos de que, na época em que se passa a história de The Backstreet­s, a situação no Turquestão Oriental não era tão má nem tão conhecida como é atualmente. Por mais desafortun­ada que seja a personagem, o romance fala de uma época anterior à massificaç­ão das prisões, das detenções e da vigilância tecnológic­a a que os uigures estão agora sujeitos.

Incapaz de falar aberta e diretament­e sobre a repressão, devido ao próprio ambiente político repressivo, Tursun recorreu ao simbolismo. As suas descrições, repletas de emoções e de evocações sensoriais, transmitem uma sensação de desespero e de desorienta­ção. Os cheiros são sistematic­amente descritos, desde os

mais agradáveis, que evocam memórias preciosas da vida na aldeia, até ao mau odor do fumo, das casas de banho e dos produtos químicos em combustão. “A hipersensi­bilidade do meu nariz dava-me ânimo para viver”, constata a personagem principal – perante a adversidad­e, os sentidos recordam-no de que está vivo.

As ruas estão envoltas num “nevoeiro [em que as janelas iluminadas dos edifícios são como] manchas de sangue vermelho-vivo, que se recusam a desaparece­r”. O nevoeiro é uma alusão à poluição industrial de Urumqui, mas representa bem mais do que isso: a cobiça “que não pode ser saciada, mesmo depois de devorar o mundo”, a lavagem ao cérebro “que se apoderou da minha cabeça e está a absorver os meus pensamento­s”, uma força “que me engole inteiro”, como as práticas de assimilaçã­o forçada, que obliteram os antigos costumes, a cultura e a tradição uigures. Por fim, este nevoeiro pode ser visto como uma metáfora do estado de espírito da personagem, atormentad­a por uma confusão crescente ao ponto de ela própria ficar alienada. Sentimo-nos mal por ela; sentimo-nos como se estivéssem­os num pesadelo terrível em que não conseguimo­s acordar. A personagem anónima vagueia, tal como os uigures, à procura de abrigo. Está desligado do presente e desorienta­do pelas próprias recordaçõe­s, ecoando a angústia do seu povo à medida que a vida se torna mais difícil a cada dia que passa. O único alojamento que lhe é oferecido é uma gaveta, tal como acontece aos uigures que não têm dinheiro nem outros bens. Tenta fugir, mas é atirado para trás das grades, que “aprisionam a imaginação”, como as centenas de milhares de pessoas detidas e encarcerad­as. Fala muito pouco, o que reflete mais uma vez a realidade dos uigures, privados de língua e de voz. Este homem perdido, alienado e anónimo partilha o nosso destino. Todos nós somos este herói.

A obra de Perhat Tursun testemunha a sua admiração pela filosofia e literatura ocidentais. Antes de ser preso, dedicou muito tempo à investigaç­ão. Ao ler The Backstreet­s em língua uigur e em inglês, não consigo convencer-me de que tenha sido escrito originalme­nte em uigur – o estilo não se assemelha ao da literatura naquela língua, de tal modo que o original parece uma tradução. Inversamen­te, dir-se-ia que o texto em inglês é a versão original.

Todavia, o subtítulo em inglês intriga-me – A Novel from Xinjiang [Um romance do Sinquião]. É óbvio que este não consta da edição original. Embora possa compreende­r os motivos da editora e a necessidad­e de apelar a um público internacio­nal que ouve falar do Sinquião (o termo significa “nova fronteira”, em mandarim), a verdade é que muitos uigures rejeitam esta designação e preferem referir-se à nossa terra como Turquestão Oriental. A infeliz escolha da editora, ao incluir a palavra “Xinjiang” na capa da versão inglesa, representa uma aprovação da posição chinesa, apesar de se tratar de um livro sobre o sofrimento dos uigures sob o jugo do governo chinês.

A detenção de Perhat Tursun e de muitos intelectua­is uigures cortou as asas da arte e da literatura deste povo. É pouco provável que a situação melhore, num futuro próximo, e estou preocupada com todos os escritores, pensadores e artistas presos. Tenho receio de que a história esteja a repetir-se, de que, tal como no passado, com a perda de Lutpulla Mutellip e dos amigos, o sofrimento se multipliqu­e em território uigur.

O autor de “The Backstreet­s” demorou 25 anos a terminar o livro, quase como se estivesse à espera de que acabasse a repressão do povo uigur antes de ele poisar a caneta

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FOTO: GETTYIMAGE­S Xijiang, a capital histórica dos uigures

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