Tragédia uigur
No romance The Backstreets, de Perhat Tursun, a errância de um anónimo simboliza os sofrimentos do povo uigur. Vítimas da política repressiva de Pequim no Sinquião, o autor e o tradutor do livro desapareceram. Uma poetisa uigur no exílio presta-lhes homen
A personagem principal do romance The Backstreets [As Ruelas, publicado pela Columbia University Press e inédito em português], de Perhat Tursun, é um estudante de Matemática. Este chega a Urumqui, a capital da região autónoma de Sinquião [Turquestão Oriental, para os uigures], para ocupar um posto de trabalho temporário num escritório. É obcecado por números, que utiliza para tentar dar sentido à vida. Não tem nome. Não há nada de embaraçoso nisso, pois este herói representa os jovens uigures, toda uma geração que tenta construir uma vida em Urumqui, depois de terminar a universidade. É esta a cruz, e a bandeira, dos jovens uigures, que procuram um emprego na capital do Turquestão Oriental [a autora deste texto, poetisa uigur exilada na Turquia desde 2013, toma a decisão política de se referir à província do Sinquião com este nome]. Nestes últimos anos, muitos postos de trabalho têm sido atribuídos exclusivamente a chineses da etnia han [o grupo étnico maioritário], o que constitui uma discriminação flagrante dos uigures no próprio país.
Perhat Tursun transmite este sentimento de alienação numa frase que repete, por várias vezes, ao longo do livro: “Não conheço ninguém nesta cidade estranha, por isso não posso ser amigo nem inimigo de ninguém.” Esta frase, acompanhada de vários símbolos, pontua os capítulos do livro. O essencial da ação desenrola-se em Urumqui, havendo também alguns episódios que se passam em Pequim, mas o herói não se sente em casa em nenhuma destas duas cidades. Sente-se estrangeiro na capital chinesa e sozinho no Turquestão Oriental.
O protagonista tem dificuldade em encontrar alojamento em Urumqui. Embora a cidade sempre tenha atraído jovens licenciados uigures, as restrições impostas pelo governo estão a tornar cada vez mais difícil a vida ali. Os uigures que não nasceram na cidade são impedidos de alugar ou de comprar um imóvel, enquanto os chineses da etnia han são recebidos de braços abertos. À falta de um lugar onde se sentir em casa, o jovem vagueia pelas ruas em busca de um sítio para descansar e dormir.
O autor de The Backstreets demorou 25 anos a terminar o livro, quase como se estivesse à espera de que a repressão do povo uigur acabasse antes de ele poisar a caneta. Três anos após ter terminado de escrever a obra, o próprio Tursun foi vítima do horror que centenas de milhares de uigures enfrentam. Em 2018, também ele foi alvo de um desaparecimento forçado. Terá sido condenado a 16 anos de prisão. O tradutor (anónimo), que trabalhou com o académico norte-americano Darren Byler na tradução da obra para inglês, também foi detido em 2017. Uma vez que os dois homens foram “arrastados” à força para o sistema distópico do Estado chinês, construído para vigiar, controlar e punir os uigures do Turquestão Oriental, Darren Byler achou que era chegado o momento de publicar o trabalho de ambos.
A opressão do povo uigur no Turquestão Oriental está presente tanto na ficção como na realidade, nomeadamente nos desaparecimentos do autor e do tradutor. Os esforços diligentes de ativistas uigures, de associações de defesa dos direitos humanos e de jornalistas de investigação revelaram novos casos de violação dos direitos humanos, nos últimos anos, à medida que o Partido Comunista Chinês intensificou a vigilância e a repressão. [Estima-se que um milhão de uigures esteja detido em campos de trabalho forçado]. Mas o clima de terror não é uma novidade. Em janeiro de 1942, o poeta Lutpulla Mutellip, uma das grandes figuras da literatura uigur moderna, escrevia: “As lágrimas de sangue não se infiltrarão no solo/ Elas não se infiltrarão, elas brilham.” Naquela altura, os uigures foram alvo de um massacre orquestrado pelo chefe militar chinês Sheng Shicai [que, entre 1933 e 1944, governou a região, então bastante autónoma]. Apoiado durante algum tempo pela União Soviética, juntou-se mais tarde ao governo nacionalista chinês, que se opunha ao Partido Comunista. Cem mil pessoas, a maioria das quais uigur, foram executadas ou presas. No ano em que escrevia aquelas linhas, Lutpulla Mutellip foi exilado à força para Acsu [a 800 quilómetros de Urumqui] e encarcerado. Viria a ser executado pelas autoridades chinesas dois anos mais tarde, com apenas 23 anos.
Embora atualmente a discriminação étnica seja mais visível, o povo uigur está submetido a este tipo de violência há gerações e gerações e está habituado a ser considerado uma ameaça para o governo chinês.
Não nos esqueçamos de que, na época em que se passa a história de The Backstreets, a situação no Turquestão Oriental não era tão má nem tão conhecida como é atualmente. Por mais desafortunada que seja a personagem, o romance fala de uma época anterior à massificação das prisões, das detenções e da vigilância tecnológica a que os uigures estão agora sujeitos.
Incapaz de falar aberta e diretamente sobre a repressão, devido ao próprio ambiente político repressivo, Tursun recorreu ao simbolismo. As suas descrições, repletas de emoções e de evocações sensoriais, transmitem uma sensação de desespero e de desorientação. Os cheiros são sistematicamente descritos, desde os
mais agradáveis, que evocam memórias preciosas da vida na aldeia, até ao mau odor do fumo, das casas de banho e dos produtos químicos em combustão. “A hipersensibilidade do meu nariz dava-me ânimo para viver”, constata a personagem principal – perante a adversidade, os sentidos recordam-no de que está vivo.
As ruas estão envoltas num “nevoeiro [em que as janelas iluminadas dos edifícios são como] manchas de sangue vermelho-vivo, que se recusam a desaparecer”. O nevoeiro é uma alusão à poluição industrial de Urumqui, mas representa bem mais do que isso: a cobiça “que não pode ser saciada, mesmo depois de devorar o mundo”, a lavagem ao cérebro “que se apoderou da minha cabeça e está a absorver os meus pensamentos”, uma força “que me engole inteiro”, como as práticas de assimilação forçada, que obliteram os antigos costumes, a cultura e a tradição uigures. Por fim, este nevoeiro pode ser visto como uma metáfora do estado de espírito da personagem, atormentada por uma confusão crescente ao ponto de ela própria ficar alienada. Sentimo-nos mal por ela; sentimo-nos como se estivéssemos num pesadelo terrível em que não conseguimos acordar. A personagem anónima vagueia, tal como os uigures, à procura de abrigo. Está desligado do presente e desorientado pelas próprias recordações, ecoando a angústia do seu povo à medida que a vida se torna mais difícil a cada dia que passa. O único alojamento que lhe é oferecido é uma gaveta, tal como acontece aos uigures que não têm dinheiro nem outros bens. Tenta fugir, mas é atirado para trás das grades, que “aprisionam a imaginação”, como as centenas de milhares de pessoas detidas e encarceradas. Fala muito pouco, o que reflete mais uma vez a realidade dos uigures, privados de língua e de voz. Este homem perdido, alienado e anónimo partilha o nosso destino. Todos nós somos este herói.
A obra de Perhat Tursun testemunha a sua admiração pela filosofia e literatura ocidentais. Antes de ser preso, dedicou muito tempo à investigação. Ao ler The Backstreets em língua uigur e em inglês, não consigo convencer-me de que tenha sido escrito originalmente em uigur – o estilo não se assemelha ao da literatura naquela língua, de tal modo que o original parece uma tradução. Inversamente, dir-se-ia que o texto em inglês é a versão original.
Todavia, o subtítulo em inglês intriga-me – A Novel from Xinjiang [Um romance do Sinquião]. É óbvio que este não consta da edição original. Embora possa compreender os motivos da editora e a necessidade de apelar a um público internacional que ouve falar do Sinquião (o termo significa “nova fronteira”, em mandarim), a verdade é que muitos uigures rejeitam esta designação e preferem referir-se à nossa terra como Turquestão Oriental. A infeliz escolha da editora, ao incluir a palavra “Xinjiang” na capa da versão inglesa, representa uma aprovação da posição chinesa, apesar de se tratar de um livro sobre o sofrimento dos uigures sob o jugo do governo chinês.
A detenção de Perhat Tursun e de muitos intelectuais uigures cortou as asas da arte e da literatura deste povo. É pouco provável que a situação melhore, num futuro próximo, e estou preocupada com todos os escritores, pensadores e artistas presos. Tenho receio de que a história esteja a repetir-se, de que, tal como no passado, com a perda de Lutpulla Mutellip e dos amigos, o sofrimento se multiplique em território uigur.
O autor de “The Backstreets” demorou 25 anos a terminar o livro, quase como se estivesse à espera de que acabasse a repressão do povo uigur antes de ele poisar a caneta