A arte de viver livre
Instalado numa aldeia abandonada, o alpinista e aventureiro japonês Bunsho Hattori exercita uma forma de vida em rutura quase total com o capitalismo
Até que ponto podemos ser livres? É possível viver sem depender de nada, incluindo dinheiro, nem de ninguém? Perguntei ao alpinista e autor de livros Bunsho Hattori, de 53 anos, o que entende por “libertação da vida”.
Antes de completar 30 anos de idade, Bunsho Hattori já alcançara o K2, o segundo cume mais alto do planeta [8 611 metros], e escalara o monte Tsurugi [2 999 metros] e as montanhas de Kurobe [nos Alpes japoneses] – e fê-lo no inverno. Desde aí, pratica o “alpinismo de sobrevivência”, sem levar tenda, nem combustível, nem mantimentos, dependente apenas da caça e da pesca. Há quatro anos, começou a recuperar uma velha casa tradicional numa aldeia abandonada, a cujo charme se rendeu durante as suas expedições. A intenção era viver naquele lugar de forma autossuficiente. Na entrevista, não nos revelou a localização dessa aldeia.
A sua mulher e os seus filhos permanecem em Yokohama [a Sul de Tóquio].
No local, vai buscar água aos ribeiros, recolhe lenha para se aquecer e para abastecer o forno que construiu, e recorre à energia solar para produzir a pouca eletricidade de que necessita, principalmente para a iluminação e para carregar o seu computador. Para se alimentar, pratica agricultura no verão e caça no inverno.
Segundo o seu novo livro, Àqueles que Desejam Viver sem Depender do Dinheiro [não traduzido para português], mesmo que seja impossível não precisar nunca de dinheiro, foi demonstrado que é possível viver com 500 mil ienes [cerca de 3 200 euros] por ano, que é o orçamento necessário para as contribuições para a reforma e para o seguro de saúde.
Há pouco mais de um ano, a convite de Norihiko Matsubara, grande escalador de cascatas, ajudei Hattori a limpar um terreno; para me agradecer, ofereceu-me uma perna de veado fumada. Depois de ter adquirido, por 300 mil ienes [por volta de 1 300 euros] uma casa construída na era Meiji [1868-1912] num terreno com cerca de um hectare num vale, acabara de comprar uma outra um pouco maior lá perto.
De vez em quando, a sua família e amigos vêm ajudá-lo, mas no resto do tempo permanece sozinho na aldeia abandonada com o seu cão. É a vida com que sonhara, entre cortar toros, cultivar campos e construir vedações. Gostaríamos de seguir as suas pisadas, mas na prática as coisas não são assim tão simples. O seu sonho já vem dos tempos da escola primária, como me explica em sua casa, em Yokohama.
“A minha mãe é de Fujishima (atualmente denominada Tsuruoka), que fica na região de Shonai e pertence à província de Yamagata [no Nordeste do Japão]. A sua antiga casa de família foi utilizada para as filmagens do filme Departures (Yojiro Takita, 2008). Tendo crescido num complexo residencial em Yokohama, quando lá fui pela primeira vez, em estudante, achei que era um sítio fantástico. Os campos de arroz eram a perder de vista e podia comer-se todo o milho e edamame [feijão de soja fresco] que se quisesse. Cheguei à conclusão de que preferia viver lá [do que em Yokohama].”
Esta ideia nunca mais o abandonou. Enquanto estudava na Universidade Metropolitana de Tóquio, desenvolveu uma paixão pelo alpinismo. “O espírito da escalada livre, que nasceu com o movimento hippie, é o eixo da minha vida”, afirma.
“Livre” significa sem nenhum equipamento. Quando se escala uma rocha utilizando apenas as mãos e os pés pela primeira vez – e até aí, se escalara sempre com a ajuda de estribos, ou seja, pequenas escadas de corda –, diz-se que essa pessoa se “libertou”. A prática foi popularizada na década de 1970 por alpinistas hippies no Parque Nacional de Yosemite, nos EUA.
Na década de 1990, Hattori dedicou-se à escalada livre a solo, ou seja, escalava sozinho sem usar cordas. Durante as suas expedições, houve uma coisa que o deixou profundamente impressionado:
“Enquanto carregava 30 quilos às costas através dos Alpes japoneses do Norte, cruzei-me com homens e mulheres que faziam caminhadas leves e paravam em abrigos.”
Nos anos 80, os abrigos de alta montanha do arquipélago, que até então eram simples chalés que serviam de refúgio durante a noite, foram transformados em verdadeiros hotéis e complexos hoteleiros.
Hattori apercebeu-se do grau de dependência dos alpinistas, que não levavam tenda nem comida: “‘É isto o alpinismo?’, questionei-me. Apercebendo-me da importância de escalar sozinho, comecei a praticar alpinismo de sobrevivência para ‘libertar’ rochas e montanhas inteiras no Japão e noutros locais. Foi nessa altura que as coisas começaram a ficar interessantes.”
Nos anos 1980, era prática comum passar dez dias a escalar, por exemplo, nas ravinas de Hidaka, em Hokkaido [uma ilha no Norte do Japão], sem levar tenda nem combustível, comendo a todas as refeições arroz temperado, e apanhando truta, plantas da família das petasites e cebolas selvagens na Natureza para saciar a fome.
A diferença entre Hattori e os outros aventureiros? O seu objetivo é tentar obter tudo sozinho, inclusive na “vida real”. Ainda que, ao deixar as montanhas, tenha acabado por comer três tigelas de tendon [arroz e tempura] e um gelado de chocolate.
A ideia de se instalar numa aldeia abandonada surgiu-lhe muito naturalmente:
“Disse para comigo: sendo o alpinismo livre tão estimulante, assim deverá ser também uma vida livre.”
Contudo, a sua viagem à tundra com Misha, o seu companheiro de caça, foi um elemento decisivo. Este estava em total harmonia com a Natureza, tal como o herói do filme de Akira Kurosawa Dersu Uzala (1975) [inspirado num homem de uma tribo indígena siberiana que levava uma vida completamente autónoma]. “Estes homens, tal como os hippies, vivem em harmonia com o planeta, o que me pareceu porreiro. Uma vez que caçam com armas, não se pode falar propriamente de uma vida ‘livre’, mas foi a ideia de se viver pelos próprios meios que me atraiu.”
No entanto, quando se tem uma família, não é assim tão simples. Bunsho Hattori ganhava dinheiro a escrever livros, a aparecer na televisão e editar a revista Gakujin, mas despediu-se dessa vida em junho do ano passado. “Como não bebo nem fumo e já paguei a minha casa em Yokohama, só tenho de me preocupar com a educação dos meus três filhos. Como a minha filha mais nova já está no último ano do Ensino Secundário, acho absurdo ainda ter de ganhar dinheiro.” Também deixará de caçar no dia em que decidir que já não precisa de providenciar uma fonte de proteínas aos filhos. Foi quando os viu tornarem-se autónomos que começou a questionar-se sobre o sentido da vida.
No seu livro Sobreviver da Caça [que não está traduzido para português], escreve: “Na realidade, quando escalamos montanhas, aprendemos mais sobre nós próprios do que sobre os monges que lá vivem. Conseguimos vislumbrar um mundo mais profundo. O medo da morte acompanha-nos semana após semana. Quando se leva uma vida normal, não é assim, mas é preciso perguntarmo-nos o que significa viver. Antes, quando via os perdedores do Koshien [campeonato japonês de basebol do liceu] chorar, não entendia porque é que choravam, mas depois de ter usado tudo o que tinha para sobreviver a um nevão nas montanhas, passei a perceber o que sentiam. Ou seja, até àquele momento eu não estava verdadeiramente a viver. Pode dizer-se que descobri a vontade de viver.”
Por instantes, teve a impressão de se fundir na paisagem, de se transformar num elemento da montanha, e o seu ego e os seus desejos haviam desaparecido. Foi uma sensação pura e nítida. Era aquilo que ele procurava. Mas assim que tentou compreender a essência dessa sensação, veio logo ao de cima o seu ego habitual.
Quando lhe li esta passagem do livro, ele comentou: “Acho que é a isso que os hippies aspiram. Veem-se a si próprios como meros hóspedes no planeta, corpos estranhos. Por isso, tentam, na medida do possível, viver o mais próximo que podem da Natureza, sem participar nos excessos humanos e na civilização do petróleo. A dureza da Natureza liberta-nos dos nossos desejos.”
A revelação que teve nas montanhas fê-lo ir viver para uma aldeia abandonada. Tem a sensação de que, num futuro próximo, haverá cada vez mais pessoas como ele. “Se pensarmos bem, era assim que se vivia no Japão rural, não há muito tempo. Esta é a paisagem reluzente de Shonai que eu via quando era criança.” Não se trata de viver na nostalgia do passado, mas de redescobrir um modo de vida simples e sem artifícios supérfluos.
“Quando escalamos montanhas, conseguimos vislumbrar um mundo mais profundo. O medo da morte acompanha-nos, semana após semana”