Destruição de manuscritos no Mali é “crime cultural”
Antes de fugirem da cidade de Tombuctu, os rebeldes islamitas incendiaram um importante centro de documentação. Forças francesas e malianas controlam agora acessos à cidade
Um “verdadeiro crime cultural”. Foi assim que as autoridades malianas classificaram ontem a destruição de milhares de manuscritos que estavam arquivados num edifício de Tombuctu ao qual rebeldes islamitas atearam fogo.
Os documentos – alguns do século XIII e na sua maioria escritos em árabe – estavam guardados no Centro de Documentação Ahmed Baba e abordavam uma série de temas: astronomia, música, medicina, poesia, direitos das mulheres. Segundo um investigador do centro, Seydo Traoré, apenas uma parte dos textos tinha sido digitalizada, mas ainda não há informações sobre se algum dos documentos sobreviveu ao fogo.
Quando souberam da aproximação das forças francesas e malianas à cidade lendária de Tombuctu, os rebeldes islamitas, que tentam dominar o país, puseram- se em fuga. No entanto, antes de partirem, não só incendiaram os manuscritos como também destruíram a câmara municipal e mataram um homem que celebrava a chegada dos franceses gritando “Vive la France” nas ruas.
Ontem, as tropas francesas e malianas ainda não tinham entrado no centro da vila, mas já tinha dominado o aeroporto e as estradas de acesso à cidade.
O presidente da Câmara de Tombuctu, Halley Ousmane, que se encontra em Bamaco, considerou o incêndio como um “verdadeiro crime cultural”. “O que se passa em Tombuctu é dramático”, afirmou, citado pela AFP. Ao The Guardian, o autarca disse que os documentos não eram só património do Mali, mas “património mundial”, e defendeu que os rebeldes “têm de ser mortos”.
De acordo com Ministério da Cultura maliano, o centro guardava entre 60 a cem mil manuscritos.
Fernando Branco Correia, professor de História do Mundo Islâmico na Universidade de Évora, classificou a destruição dos manuscritos como uma “perda irreparável” para a história ibérica. O professor explicou à Lusa que, entre os documentos queimados, estariam “obras únicas que têm a ver com a fase do Islão tolerante” e com a convivência de “cristãos ( moçárabes), muçulmanos e judeus” durante a fase de domínio islâmico nos territórios que são hoje Portugal e Espanha.
De acordo com site do o Instituto de Altos Estudos e Investigação Islâmica, onde está integrado o centro Ahmed Baba, o projeto nasceu em 1967 durante uma reunião convocada pela UNESCO. Na altura, foi aprovada uma resolução que apelava ao Governo do Mali que estabelecesse em Tombuctu um centro para a preservação de manuscritos árabes. Em 1973, o projeto avançou com fundos doados pelo Kowait.
Em 2009, o centro começou a funcionar em instalações novas após a realização de um acordo entre os Governos do Mali e da África do Sul com o objetivo de promover a conservação e a investigação dos manuscritos como parte da herança africana. O edifício incluía salas de conferências, um anfiteatro, uma biblioteca e alojamento para investigadores estrangeiros. Além das novas instalações ( que estavam a ser usadas como abrigo pelos rebeldes), os islamitas incendiaram um antigo armazém com documentos.
No terreno, as tropas francesas têm estado a reconquistar algumas das mais importantes cidades do Norte, dominadas há meses pelos rebeldes. “Estamos a ganhar esta batalha”, garantiu ontem o Presidente francês, François Hollande.