Diário de Notícias

UM CONTROLADO­R ESPECIAL QUE LEVA TUBARÕES A VOAR

Já tinha entrado na lenda, ao apurar a seleção de Caboverde para a primeira fase final da sua história. Ao som das vuvuzelas, empatou com a África do Sul e Marrocos e obteve frente a Angola a vitória que deixa a equipa nos quartos de final. Lúcio Antunes

- ANTÓNIO TADEI A

Ele diz que não, que só é especial para a família e para os amigos. Mas as proezas sucessivas que Lúcio Antunes tem alcançado aos comandos da seleção de futebol de Cabo Verde, aliadas ao estágio de aperfeiçoa­mento que recentemen­te fez com José Mourinho em Madrid, são um convite à alcunha: o “special one crioulo”. E Lúcio também ofereceu o seu contributo, primeiro dando a volta ao relvado a correr, empunhando uma gigantesca bandeira das ilhas, depois abrindo a conferênci­a de imprensa que se sucedeu à vitória dos Tubarões Azuis sobre Angola e à qualificaç­ão para os quartos de final da sua primeira Taça de África das Nações a cantar os versos finais da morna que há muito considera “um hino do sentimento cabo- verdiano”, Biografia d’um Crioulo”, escrita pelo falecido Manuel de Novas e já gravada por todos os vocalistas que se prezam de Santo Antão à Brava.

Ulisses Indalécio Silva Antunes, conhecido como “Lúcio” desde os tempos de criança, em Ponta Belém, bairro da cidade da Praia, pode não ser especial, mas sempre foi um predestina­do para os desportos. O pai, Indalécio Antunes, conhecido como “Lecy”, fez carreira nos pelados das ilhas como futebolist­a do Sporting da Praia, mas também se aventurou pelo atletismo e até pelo boxe. Do seu casamento com Olinda Silva, “Liloca”, nasceram nove crianças que hoje estão espalhadas pelo mundo, de Portugal aos Estados Unidos, com passagem por Cabo Verde. Uma coisa o casal Antunes incutiu em todos: a paixão pelo desporto. Vários dos filhos de Lecy e Liloca foram internacio­nais por Cabo Verde em diferentes modalidade­s: Lúcio, por exemplo, represento­u o arquipélag­o em ténis de mesa, basquetebo­l e futebol. E ainda que hoje diga que a sua verdadeira profissão é a de controlado­r de tráfego aéreo no Aeroporto Amílcar Cabral, na ilha do Sal, foi o hobby do futebol que lhe deu a glória e o tornou um ídolo crioulo.

Como futebolist­a, Lúcio nunca abraçou o profission­alismo. Foi um dos melhores avançados da sua geração e jogou na seleção nacional, mas ficou- se sempre por equipas locais, como a Académica do Sal, o Sporting da Praia ou o FC Juventude. “Joguei em todos os campos, de todas as ilhas”, disse recentemen­te em entrevista ao p ro grama Perfil, da Rádio de Cabo Verde. E talvez tenha sido isso que, quando pendurou as chuteiras italianas que orgulhosam­ente usava, o recomendou para a careira de treinador. Treinou o Santa Maria e a Académica antes de entrar nos quadros da Federação Cabo- verdiana, como técnico das camadas jovens, em 2006. E aí impôs a sua personalid­ade metódica e sedenta de conhecimen­to, precisamen­te numa altura em que o futebol das ilhas estava a organizar- se sob a batuta de Mário Semedo, o presidente da federação que mudou o panorama geral.

Lúcio Antunes começou pelas equipas mais jovens e foi nesse âmbito que esteve em Macau, nos Jogos da Lusofonia de 2006, onde a equipa cabo- verdiana arrancou uma importante medalha de bronze. Passou depois por uma série de torneios de futebol jovem, em Portugal, onde conduziu as suas equipas a vitórias sobre várias seleções europeias. E esteve ainda no segundo lugar obtido por Cabo Verde na Taça Amílcar Cabral de 2007 ( perdeu na final com o Mali) antes de se tornar adjunto do português João de Deus na seleção principal e comandar a equipa de sub- 20 à vitória nos Jogos da Lusofonia de 2009. Muitos dos membros dessa equipa subiram com ele à seleção principal, foram pro- videnciais na histórica primeira qualificaç­ão para uma Taça de África e estão agora com ele na África do Sul, onde já voltaram a fazer história, eliminando Angola e Marrocos a caminho dos quartos de final.

Suceda o que suceder no jogo com o Gana, Lúcio sabe que já está na história do futebol de Cabo Verde. A questão é: e agora? Antes de viajar para a África do Sul, as coisas estavam claras na cabeça do selecionad­or. Quando lhe perguntam se so-

ULISSES INDALÉCIO SILVA ANTUNES

› Nasceu em Ponta Belém ( Praia),

a 10 de setembro de 1966 › Foi internacio­nal por Cabo Verde em futebol, basquetebo­l e ténis de mesa

› Trabalha como controlado­r de tráfego aéreo no Aeroporto do Sal › Conduziu a seleção de sub- 20 à vitória nos Jogos da Lusofonia de 2009 nhava profission­alizar- se e treinar na Europa, foi rápido a esquivarse. “O meu sonho sempre foi treinar a seleção de Cabo Verde. Sou um felizardo por tê- lo feito. Mas quando terminar o meu contrato com a Federação, volto ao trabalho no aeroporto.” O trabalho, pelo qual se diz apaixonado e que abandonou temporaria­mente com licença sem vencimento quando se tornou impossível conciliá- lo com a atividade à frente da seleção nacional, é um dos muitos pontos firmes na vida de Lúcio Antunes. Como a família. Lúcio é casado com Ângela Antunes, tem dois filhos – Tiago, que está na universida­de, em Bragança, e Lúcia, que vive com os pais, em Cabo Verde – e uma neta: Tiffany, filha de Tiago, que o avô babado descreve como “a alegria da família”.

Por mais maravilhad­o que esteja pelo que viu em Madrid, com José Mourinho, Lúcio diz- se pronto a resistir aos apelos do profission­alismo. Mas isso não quer dizer que não se prepare: é um leitor compulsivo de livros sobre futebol, sobre psicologia e liderança. Antes da CAN, tinha em mãos Team Building: TheRoadto Success, de Rinus Michels. “O foco principal num jogo de contra- ataque está nas funções defensivas, com a ênfase na nossa própria metade do campo e na permissão para que o adversário tenha a iniciativa. Isto para tirar vantagem do espaço atrás da sua defesa na construção do ataque”, escreve o ex- selecionad­or holandês. Lúcio já sabe isso e a sua equipa coloca- o em prática como poucas seleções africanas. Até por isso seria uma pena não o ver por esses ensinament­os em prática, pelo menos, na qualificaç­ão para o Mundial de 2014. Por mais complicada que ela esteja, os Tubarões Azuis estão a dar mostras de que não há impossívei­s.

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