Diário de Notícias

Seis artistas a pensar Angola para evitar “a amnésia coletiva”

No Fly Zone’ junta, a partir de amanhã, seis artistas angolanos no Museu Berardo, em Lisboa

- MARIA J OÃO C AE TAN O

Quando era pequeno e os miúdos na escola gozavam com os seus dentes da frente, tão afastados, a mãe de Binelde dizia- lhe: “Não te preocupes, homem, tens tudo nas tuas mãos.” Foi com essas mãos que começou a manipular objetos e a construir obras de arte. A influência da mãe, que costurava para fora para poder pagar os estudos dos filhos ( ele lembra- se de como era fascinado pela máquina Singer, só descansou quando percebeu como ela funcionava), é visível nas peças que cria ainda hoje.

Como esta Thirteen Hours, onde Binelde Hyrcan apresenta uma série de galinhas empalhadas e vestidas com casacos militares, idealizado­s pelo artista, como um pequeno exército que segue a galinha- imperadora de longo manto. “Podia ser designerde moda, não é?”, ri- se. Mas é muito mais do que isso. Faz umareflexã­o sobre o poder totalitári­o e a“vaidade humana”: “Num primeiro momento até pode fazer rir, mas se olharmos com atenção esta peça é trágica. Fala de algo doloroso.” Fala da guerra. Das guerras.

Binelde tem 30 anos e cresceu com a guerra. Não foi o único. Binelde Hyrcan é um dos seis artistas angolanos que integram a exposição “No Fly Zone. Unlimited Mileage”, que inaugura amanhã e fica até 31 de janeiro no Museu Berardo, em Lisboa. Os outros artistas são Paulo Kapela ( o mais velho, nascido em 1947), Kiluanji Kia Henda, Edson Chagas, Nástio Mosquito eYonamine ( a nova geração, nascida após 1975).

“A ideia para a exposição começou pelo ‘ No Fly Zone’ decretado na Líbia, que nos pôs a pensar sobre a mobilidade dos artistas africanos”, explica Suzana Sousa, uma das curadoras da exposição, a par de Fernando Alvim e Simon Njami. E explica: “A questão dos vistos é muito importante para quem vive em África. Há uma série de entraves à circulação. Mas, apesar disso, os artistas circulam e mostram as suas obras.” Estes artistas que estudaram ou trabalhara­m no estrangeir­o. Técnica e conceptual­mente, são artistas do mundo, mas todos eles fazem uma reflexão sobre a identidade de Angola, a relação com a história e a memória.

Como se olha para um país que foi colonizado, que se tornou independen­te, que viveu uma guerra civil, que vive agora a explosão económica antes sequer de ter tempo de se pensar? Essa é a grande pergunta de Kiluanji Kia Henda. “O que fazer com este legado?” E o legado são estátuas, são canhões, mas são também preconceit­os e modos de pensar. “Temos de refletir sobre isto e evitar uma amnésia coletiva. É impossível olhar para a história de Angola e não fazer uma abordagem política”, diz Kiluanji.

Numa das salas, confrontam- se um dos altares de Kapela e uma “parede- quadro” de Yonamine, ambos retratando Angola nas suas contradiçõ­es. Yonamine foi buscar jornais dos anos de 1976- 77 e com um minucioso trabalho de corte e colagem juntou títulos, fotos e textos, procurando referência­s da sua infância ( estão lá os cinemas ao ar livre que hoje já não existem), algumas das suas causas ( a descrimina­lização da marijuana), os slogans apelando “disciplina, disciplina” ou “abaixo o imperialis­mo”. “Tenho tanta vergonha disto, mas a necessidad­e que tenho de o mostrar é maior do que a minha vergonha”, diz. Entre as notícias, está a foto do irmão de Yonamine, desapareci­do aos 25 anos. “É um ‘ restin peace’. Esta é também a minha história. Não estou a fazer uma obra para encher uma sala, estou a dizer a minha verdade.”

“Éimpossíve­l não fazer uma abordagem política”

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VÍTOR RIOS/ GLOBAL IMAGENS Yonamine com ‘ Cara- Show’, a sua última obra, uma ‘ parede- quadro’
 ?? VÍTOR RIOS/ GLOBAL IMAGENS ?? Binelde Hyrcan com ‘ Thirteen Hours’ – um exército de galinhas
VÍTOR RIOS/ GLOBAL IMAGENS Binelde Hyrcan com ‘ Thirteen Hours’ – um exército de galinhas

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